Estagnação

De republicana e democrática, a política parece transformar-se numa reedição do patrimonialismo colonial

ERA CONSTANTE , em outros tempos, relacionar qualquer impasse administrativo ou problema crônico da sociedade brasileira à inexistência de "vontade política" por parte dos governantes. Quando estavam na oposição, Lula e o PT abusavam desse recurso retórico. Da alta taxa de juros à péssima pavimentação das rodovias federais, do analfabetismo à febre aftosa, mazela nenhuma havia que não pudesse ser resolvida rapidamente caso as autoridades se imbuíssem desse mágico atributo.
O contato com uma realidade infinitamente mais complexa do que os discursos eleitorais logo determinou, por invalidez, o abandono desse refrão. Seria até natural, na melancólica opereta a que se assemelha a vida partidária brasileira, que PSDB e DEM viessem agora a entoá-lo, num dueto de renovado ímpeto.
De todos os lados, entretanto, o tema da "vontade política" parece ter entrado em desuso, e não apenas pelo que havia de mítico em sua invocação. O que pudesse haver no termo de apelo concreto à mudança, à discussão de alternativas, à formulação de projetos viáveis para o país também desaparece de vista.
É sintomático, desse ponto de vista, que setores inconformados da sociedade civil não tenham adotado, em seus protestos contra o descontrole aéreo e a corrupção, nada mais que o vago e descolorido lema do "cansei".
Cansaram-se todos, na verdade, a começar pelo próprio governo Lula. Projetos de maior envergadura de reforma tributária, política e penal encontram-se estagnados -não apenas no Executivo e no Congresso mas também nos debates da própria opinião pública.
A vida política reduziu-se, nos últimos tempos, à administração das crises internas da base governista e ao importante, mas limitado, terreno das apurações de sempre em torno dos escândalos da véspera.
As prioridades do Executivo agora se concentram no esforço de obter a prorrogação da CPMF no Congresso. A manutenção "ad aeternum" de uma alíquota provisória sobre a movimentação financeira se torna como que o símbolo de um modelo político em que nenhuma solução de longo prazo é discutida e aprovada, em que o temporário se torna crônico, em que os cuidados do varejo predominam sobre a visão de Estado e em que a velha "vontade política" se traduz, em toda parte, no desejo de ocupar mais postos de poder.
Trocam-se emendas por migalhas, negocia-se com esforço a manutenção da mesma coisa, órgãos públicos são entregues de "porteira fechada" a pecuaristas virtuais, para manter intocadas as fontes de recursos à disposição de uma estrutura parasitária e ineficiente.
De republicana e democrática, a vida política brasileira parece assim transformar-se numa espécie de reedição do patrimonialismo colonial: distribuem-se capitanias aos favorecidos, organizam-se periódicas derramas tributárias, o país estagna, e a corte se diverte.

(Editorial da Folha de São Paulo, 19/08/07)

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