Consolidando a ditadura

A modéstia não está entre as qualidades do coronel Hugo Chávez. Quarta-feira - bom discípulo de Fidel Castro - ele fez um discurso de mais de quatro horas na Assembléia Nacional para apresentar o seu projeto de reforma da Constituição venezuelana, que já era obra sua. “Com isso ativamos o maravilhoso mecanismo - não quero parecer pretensioso, mas é verdade - de uma das mais avançadas constituições do universo-mundo.” Mas a verdade é que o texto apresentado por Chávez é uma simples consolidação de um monumental retrocesso político e institucional para a Venezuela, que só um caudilho autoritário poderia conceber. O coronel golpista já controla o Poder Judiciário e o Poder Legislativo do país, além de 23 dos 25 governos estaduais, e está no poder há 8 anos - mas isso, para ele, é pouco. Com a reforma, a pretexto da construção de um esdrúxulo “socialismo do século 21”, ele assegura as condições para a sua perpetuação no poder, com uma soma de prerrogativas ainda maior do que a que já tem.

“Sempre foi a oligarquia que teve o poder na Venezuela e isso tem de mudar. O poder é do povo e não dos oligarcas”, afirmou Chávez antes de começar a recitar para os deputados as alterações de 33 dos 350 artigos da sua Constituição de 1999. E, a cada item que lia e explicava detalhadamente, ao observador isento ficava claro que a reforma foi feita sob medida para que a oligarquia fosse substituída definitivamente pelo todo-poderoso Chávez.

Não por acaso, o ponto central da reforma é o dispositivo que permite a reeleição sem limites do presidente da República. Chávez, que anunciava que ficaria no poder até 2021, ultimamente tem afirmado, meio a sério, meio brincando, que governará a Venezuela durante 40 anos. É em torno dele - com renovados poderes - que se desdobra a “construção da democracia socialista”. Pois, segundo Chávez, só no socialismo é possível a “verdadeira democracia. No capitalismo, a democracia não é possível”.

Como bom democrata, Chávez definiu como um dos componentes do Estado o “poder popular”. Mas, para ele, o poder popular não se expressa pelo voto, e sim pela “condição dos grupos humanos organizados como base da população”, através das comunidades e dos conselhos operários, camponeses e estudantis - versão “bolivariana” dos sovietes stalinistas. E também, é claro, pelos comitês de defesa do bolivarianismo, que continuarão cuidando para que o apoio popular ao caudilho seja unânime e espontâneo.

A “democracia socialista” de Chávez, como é natural, evitará todos os males do capitalismo. O monopólio, qualquer monopólio, por exemplo, está proibido, exceto os estatais e outros que sejam convenientes por interesse público ou por seu caráter estratégico - tudo isso definido pelo caudilho. Poderão ser criadas empresas, desde que obedecidos os “princípios da economia socialista”.

E que ninguém diga que Hugo Chávez extinguiu a propriedade privada. Sua constituição prevê cinco tipos de propriedades: 1) a social, pertencente ao povo e controlada pelo Estado; 2) a coletiva, pertencente a grupos sociais ou comunitários, mas sob o controle do Estado; 3) a mista, com participação do setor privado e do Estado, mas sob o controle deste; 4) a pública, administrada pelo governo; e 5) a privada, que poderá ser confiscada quando afetar os direitos de terceiros ou da sociedade. Em resumo, o Estado - leia-se Hugo Chávez - será o grande proprietário de todos os meios de produção e de serviços.

O Banco Central passa a ter papel decorativo. As reservas internacionais serão administradas pelo presidente da República, que também definirá a política monetária. O objetivo, segundo Chávez, é eliminar todo vestígio de autonomia do Banco Central. Na sua visão, os bancos centrais são autônomos “dos governos e do país, mas dependentes do modelo mundial de dominação, da ditadura monetária mundial”.

A Constituição vigente na Venezuela foi aprovada em 1999 segundo os cânones bolivarianos determinados por Chávez. Ela estabelece que seus princípios fundamentais só podem ser modificados por uma Assembléia Constituinte, e nunca por simples emenda. Hugo Chávez pisa na Constituição que escreveu, mudando completamente a natureza do Estado e do regime, sem convocar a Constituinte. Pode fazê-lo. Controla os 176 deputados que constituem a Assembléia Nacional e tem todos os poderes do Estado nas mãos.

(Editorial do Estadão, 19/8/07)

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