Editorial da Folha de São Paulo (05/08)

Negligência e farsa

Invertem-se os atores em cena: incompetentes de agora reagem mal a uma estridência que possuíam de sobra no passado

NO FINAL da tarde de quarta-feira passada, uma ponte desabou sobre o rio Mississippi, no Estado americano de Minnesota; calcula-se entre 20 e 65 o número das pessoas desaparecidas na tragédia. Investigam-se agora suas causas; haverão de ser múltiplas, como é habitual em fatalidades desse tipo.
A possibilidade de que diversos fatores tenham contribuído para o acidente não torna insensata, fora de contexto nem desonesta a opinião de especialistas norte-americanos, transcrita em reportagem da Folha na sexta-feira, que destacam a negligência das autoridades de seu país com obras de infra-estrutura.


Não há notícia de que críticas desse gênero tenham sido consideradas fruto de alguma articulação golpista contra o presidente dos Estados Unidos ou o governador do Minnesota.


Quaisquer que tenham sido suas causas específicas, o acidente com o avião da TAM em Congonhas veio intensificar as mais profundas e justificadas inquietações da opinião pública com relação à segurança do tráfego aéreo no Brasil. Meses seguidos de exasperação e pane nos aeroportos do país não despertaram, por parte do governo federal, nada além de um costumeiro espetáculo de inoperância, leviandade, diversionismo e desencontro.
Só depois do acidente em Congonhas o governo federal resolveu tomar atitudes mais claras no enfrentamento do colapso aéreo. Ainda que

tacitamente, por fim reivindica sobre si mesmo um conjunto de responsabilidades que, entre acessos persecutórios e comemorações obscenas, alguns de seus correligionários insistem em renegar.


As críticas ao caos aéreo passam a ser caracterizadas, no discurso petista, como atos de conspiração política. É assim que a acusação de "golpismo" se torna álibi para a clamorosa incompetência do governo nesse setor.


Por certo, o descaso com a infra-estrutura não surgiu na atual administração. Durante o governo FHC, o apagão energético municiou os ataques da oposição, que legitimamente cumpria o seu papel. Invertem-se os atores em cena, os omissos da véspera são os acusadores de hoje, e os incompetentes de agora reagem mal a uma estridência que possuíam de sobra no passado.


Sem perder a antiga arrogância, mas já destituído de requisitos morais mínimos para ostentá-la, o PT adota mais uma vez o roteiro farsesco de dizer-se "vítima das elites". De dedo em riste, os aliados de Renan Calheiros, de Paulo Maluf e Fernando Collor denunciam "conspirações de direita" supostamente renovadas pelo acidente da TAM.


Perdidas todas as suas utopias, abandonados todos os seus compromissos programáticos, preservam-se numa espécie de delírio compensatório, feito daquilo que, sem dúvida, sempre tiveram de mais entranhado em sua tradição política: o jargão inquisitorial, o oportunismo dos argumentos, a negação dos fatos, o inconformismo com os valores da democracia e da liberdade.

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