Segundo Editorial do Estadão, 16/10/2022

 Depravação eleitoral


A asquerosa exploração de supostos casos de violência sexual contra crianças como arma eleitoral pela senadora eleita Damares Alves mostra não haver limite moral no bolsonarismo


Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
16 de outubro de 2022 | 03h00


A senadora eleita Damares Alves (Republicanos-DF), ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, está empenhada na campanha para a reeleição do presidente Jair Bolsonaro. No último sábado, falando a fiéis de uma igreja evangélica em Goiânia (GO), Damares não hesitou em fazer uso, com fins unicamente eleitorais, de supostas violências e perversidades sexuais de que crianças brasileiras teriam sido vítimas. No afã de conquistar votos para o presidente, a futura senadora demonstrou que a cruzada eleitoral bolsonarista não tem limites morais nem resquícios de civilidade e respeito pelas crianças que diz defender.

Em sua fala a fiéis evangélicos, a ex-ministra citou supostos casos de tráfico internacional de crianças, a partir da Ilha de Marajó, no Pará, que envolveriam mutilações corporais para a exploração sexual. O uso do termo “supostos” para tratar das violências e perversidades relatadas por Damares deve-se ao fato de que, até o momento, não houve confirmação de que o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos tenha, de fato, recebido as referidas denúncias, o que levanta suspeitas sobre a veracidade das declarações da senadora eleita.

Se tais informações ainda carecem de confirmação, a imoralidade do gesto de Damares está plenamente verificada. A senadora eleita trouxe para o calor da campanha eleitoral um tema que mesmo o mais despudorado ou obtuso agente público deveria saber que deve ser tratado com a máxima discrição e com muita responsabilidade.

Sendo verdadeiras as denúncias, o Ministério que Damares dirigiu deveria ter feito o possível para mitigar o sofrimento das vítimas e encaminhar os casos para investigação e punição. No entanto, não há como saber se isso foi feito. Procurada pelo Estadão, a assessoria da senadora eleita indicou três documentos − relatórios de Comissões Parlamentares de Inquérito na Câmara, no Senado e na Assembleia Legislativa do Pará − nos quais as denúncias estariam registradas. A reportagem procurou, mas não localizou os casos citados. No Pará, o Ministério Público e a Polícia Civil já pediram informações ao governo federal, pois igualmente não as tinham. O mesmo fez a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, em Brasília. Se as denúncias existem, esses órgãos obviamente querem ter acesso a elas para poder agir.

Diante da crescente desconfiança de que teria inventado as denúncias, Damares afirmou, em entrevista à Rádio Bandeirantes, que se baseou em conversas com moradores da Ilha de Marajó. “Eu não estou denunciando, eu estou trazendo à luz o que já estava denunciado”, disse ela, que foi alvo de uma notícia-crime por parte de advogados que cobram punição, caso se confirme a mentira.

Por ora, o que se sabe é que Damares não viu problema em usar situações de extremo sofrimento e crueldade envolvendo crianças de 3 ou 4 anos para fazer campanha. No sábado, o templo da Assembleia de Deus Ministério Fama estava cheio e havia crianças no local. Foi na frente delas que Damares descreveu os supostos crimes, com detalhes tão abjetos que evitaremos reproduzir aqui, em respeito ao leitor.

Há quem, diante disso, atribua à senadora eleita algum tipo de perturbação mental, mas que ninguém se iluda: o que um observador incauto poderia tomar por loucura não passa de método. Damares disse que “o inferno se levantou” contra Bolsonaro depois que o presidente mandou tomar providências para proteger as crianças. “A guerra contra Bolsonaro que a imprensa levantou, que o Supremo Tribunal Federal levantou, que o Congresso levantou não é uma guerra política, é uma guerra espiritual”, bradou ela. Parece insanidade, mas não é: a mensagem depravada do bolsonarismo afinal se disseminou, resistente a qualquer contraprova, e agora não são poucos os eleitores que passaram a acreditar que não têm alternativa senão votar no “mito” para impedir nada menos que o estupro de bebês.

Sim, não há limites para a imoralidade bolsonarista. Valer-se da violência contra crianças, mesmo que imaginária, para evocar teses grotescas e conquistar votos é prática repulsiva de quem não tem apego moral de qualquer espécie. Nada de bom se constrói sobre essa base degenerada.

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