Editorial do Estadão, 12/10/2022

 Não foi só a PEC Kamikaze


Feroz crítico da gastança petista, mercado parece indiferente ao caráter perdulário do Centrão, que usa o conservadorismo liberal para disfarçar o sequestro do Estado para fins privados


Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
12 de outubro de 2022 | 03h00


O triunfo de deputados e senadores vinculados a partidos do centro e da direita nas eleições foi motivo de comemoração no mercado financeiro. Analistas avaliaram que um Congresso conservador seria uma barreira a medidas populistas propostas por um eventual governo liderado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para o mercado, a esquerda teria maior disposição para aumentar gastos, enquanto o centro e a direita tenderiam à moderação fiscal. Se isso já foi verdade no passado, o histórico recente de atuação do Legislativo não inspira nenhum otimismo em relação à contenção de despesas públicas.

Desde o início do governo de Jair Bolsonaro, quase 40 iniciativas aprovadas pela Câmara e pelo Senado resultaram na ampliação de gastos públicos. Por meio de um artigo publicado no site Brazil Journal, os economistas Marcos Lisboa e Marcos Mendes resgataram projetos que ficaram esquecidos diante do descalabro da chamada “PEC Kamikaze”, a Proposta de Emenda à Constituição que autorizou o Executivo a gastar R$ 41,25 bilhões ao reajustar o piso do Auxílio Brasil e conceder benefícios a taxistas e caminhoneiros a menos de três meses da eleição.

A lista organizada por Lisboa e Mendes inclui benesses a muitos setores empresariais e segmentos da sociedade identificados com o bolsonarismo – e que guardam um conivente silêncio em relação à gastança fiscal promovida pelo casamento entre governo e Centrão. Pudera. O Congresso zerou tributos federais para o setor de hotéis e turismo por cinco anos; templos religiosos ficaram isentos de IPTU; militares puderam acumular cargos públicos sem cumprir o teto; a desoneração da folha de pagamento de 17 setores foi prorrogada; bolsas de estudos vinculadas ao Prouni, concedidas como contrapartida aos benefícios fiscais das instituições de ensino, foram reduzidas; setores como portos, aviação, informática, biogás, gás natural e fontes renováveis tampouco foram abandonados à própria sorte.

Todas essas iniciativas vão gerar custos bilionários para o futuro presidente administrar. A maioria foi aprovada neste ano, em tramitação expressa e sem discussão com a sociedade. Muitas tiveram apoio de Bolsonaro – ora explícito, ora envergonhado e silente. Pouco mudou em relação à legislatura que acaba de ser eleita. Mais da metade dos deputados que disputavam a reeleição foi bem-sucedida, o que autoriza previsões fundamentadas em atuações pregressas, e a renovação que houve no Senado foi amplamente favorável aos candidatos apoiados pelo presidente, que patrocinou a maioria das medidas. O Centrão, no entanto, continuará a ter papel fundamental na construção da base de qualquer governo.

Também não houve mudanças na representação dos partidos de esquerda no Congresso, que continua minoritária. Na Câmara, as sete siglas – PT, PDT, PSB, PCdoB, PSOL, PV e Rede – conquistaram 120 cadeiras na eleição de 2018 e, agora, terão 125. Dos 27 senadores eleitos, apenas 5 integram esses partidos. Nos últimos anos, a articulação do grupo fez mais barulho do que diferença nas votações, e o caso mais emblemático talvez tenha sido o da PEC dos Precatórios. Como toda Proposta de Emenda à Constituição, esta precisava obter maioria qualificada para ser aprovada, mas o apoio ao calote das dívidas da União era tão grande que dispensou os votos da oposição. Foi por meio dela que o governo devassou o teto de gastos e abriu um espaço de mais de R$ 100 bilhões no Orçamento para pagar as emendas de relator e elevar o valor reservado para o fundo eleitoral.

Há muitos outros exemplos que comprovam o caráter perdulário de um Congresso dominado pelo Centrão, grupo suprapartidário que se esconde sob a égide do conservadorismo liberal para disfarçar uma atuação pautada pela distribuição de pequenezas aos amigos. Com fatos, e não opiniões políticas preconcebidas, Lisboa e Mendes deixam claro o quanto o Legislativo recém-eleito deveria despertar apreensão em relação ao resgate da solidez das contas públicas, sobretudo quando o presidente se recusa a assumir a liderança que o cargo lhe impõe.

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