Editorial do Estadão, 27/10/2022

Constituição de 1988, caminho de paz


É urgente a tarefa de pacificação nacional, que inclui respeitar as liberdades fundamentais e prover uma mais madura compreensão da independência e harmonia entre os Poderes


Notas&Informações, O Estado de S.Paulo
27 de outubro de 2022 | 03h00


Se há uma necessidade consensual para 2023, seja quem for o presidente eleito no domingo, é a pacificação nacional. Para este jornal, não há desenvolvimento social e econômico possível com tanto conflito, com tanta agressividade, com tanto atrito entre os Poderes. O que ocorreu nos últimos quatro anos no País foi absolutamente disfuncional. Por isso, consideramos que o Brasil precisa urgentemente de paz – e isso é uma tarefa de todos; muito especialmente, de quem exerce autoridade no Executivo, no Legislativo e no Judiciário.

A dimensão da tarefa pacificadora pode causar certa perplexidade. Pode-se ter a impressão de ser uma empreitada difícil demais, em que as pontes de diálogo, racionalidade e equilíbrio teriam sido há muito implodidas. Já não teríamos disponíveis as ferramentas necessárias para a reconstrução da paz.

Diante desse panorama desafiador, é preciso lembrar que, apesar de todos os pesares – apesar da crise cívica, social e política em que o País se encontra –, continuamos contando com a Constituição de 1988. Ela tem inúmeros defeitos, tantas vezes criticados neste espaço. Mas dois aspectos muito positivos se sobressaem nesse texto que, resultado de um impressionante trabalho da Assembleia Constituinte, é expressão central das aspirações da sociedade brasileira.

Em primeiro lugar, a Constituição de 1988 assegurou aquilo que é a base de uma sociedade livre: direitos e garantias fundamentais, ancorados no princípio da dignidade humana e que não estão sujeitos a maiorias políticas. Seja qual for o governo, seja qual for a maioria parlamentar, continuará havendo liberdade de expressão e de opinião, liberdade religiosa, liberdade econômica e todas as outras liberdades reconhecidas no texto constitucional. Muita coisa muda e pode mudar na sociedade e no Estado, mas – eis a afirmação basilar da Constituição de 1988, que é fundamento de paz e tranquilidade para toda a população – existem cláusulas pétreas, pontos inegociáveis que todos, sem exceção, devem respeitar e proteger.

O segundo aspecto muito positivo da Constituição de 1988 refere-se ao princípio da separação dos Poderes. O legislador constituinte forneceu um caminho republicano para a ação do Estado. Nele ninguém detém poder absoluto. Cada autoridade dispõe de um âmbito de atuação, e o exercício deste poder está sempre sujeito à transparência e ao controle de outros órgãos. Não existe poder acima da Constituição. Não existe poder à margem da lei.

Não se fala aqui de um tema teórico, distante do dia a dia da população. A submissão de toda ação estatal aos limites e procedimentos constitucionais é não apenas condição para manter a paz, como caminho para o restabelecimento da paz. Por isso, a tarefa de pacificação nacional inclui, de forma muito direta, uma nova e mais madura compreensão da relação de independência e harmonia entre os Poderes.

Não há paz possível se um Poder avança sobre competências alheias ou se não respeita as legítimas decisões dos demais. A maioria obtida nas urnas por um governante não autoriza confrontar e, menos ainda, afrontar decisões que não lhe agradam. Da mesma forma, o fato de a Constituição ser ampla e ter normas abertas não permite que o Judiciário modifique decisões políticas contrárias a eventuais interesses ou percepções de um magistrado ou tribunal.

Não há paz possível se um Poder não defende suas prerrogativas. Por exemplo, o orçamento secreto – a entrega da gestão orçamentária própria do Executivo a algumas lideranças do Legislativo, em manobra sem transparência e sem critérios técnicos – é profundamente desagregador. Não é caminho de paz.

Não há paz possível sem respeito ao princípio federativo. Estados e municípios dispõem de uma autonomia que não pode ser atropelada pelo poder central, seja Executivo, Legislativo ou Judiciário.

O respeito às instituições – às suas prerrogativas, à sua independência e ao seu trabalho – não é exigência formal ou burocrática. É o reconhecimento prático de que, num Estado Democrático de Direito, o poder é sempre limitado. Não há soberanos imperando sobre a sociedade – e isso é fonte de paz.

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