Primeiro editorial do Estadão, 26/10/2022

 Que democracia?


A democracia é a melhor forma de governo para 79% dos brasileiros, mas os mesmos eleitores apoiam um candidato que admira ditaduras e outro que defende direitos só para ‘maioria’


Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
26 de outubro de 2022 | 03h00


O Datafolha acaba de publicar uma pesquisa que aponta que 79% dos brasileiros consideram que a democracia é sempre melhor do que qualquer outra forma de governo. Trata-se do maior índice de aprovação do regime das liberdades desde o início da série histórica, em 1989. O apoio a uma ditadura “em certas circunstâncias” une 5% dos respondentes, o menor porcentual já registrado pelo instituto. Já os que acham que “tanto faz” entre democracia e ditadura somam 11%.

É alvissareiro, não resta dúvida, que a esmagadora maioria da sociedade apoie a democracia, sobretudo porque esse resultado foi aferido a menos de dez dias do segundo turno da eleição presidencial. E esta não é uma eleição trivial. De um lado, o presidente e candidato à reeleição, Jair Bolsonaro, pede votos para salvar a democracia, supostamente ameaçada por seu adversário, o petista Lula da Silva; Lula da Silva, por sua vez, igualmente se apresenta como campeão da democracia contra o golpismo bolsonarista. Ou seja, de um jeito ou de outro, a democracia tornou-se central na campanha, algo que jamais aconteceu, nessa dimensão, em qualquer outra eleição desde a redemocratização do País.

Mas que democracia é essa que tantos brasileiros dizem apoiar e que Lula e Bolsonaro se propõem a salvar?


De acordo com o Datafolha, 80% dos eleitores de Bolsonaro declaram apoio à democracia. Ora, ao longo de toda sua trajetória política, mas em particular durante seus quase quatro anos de mandato presidencial, Bolsonaro avacalhou profundamente os ritos e as normas fundamentais de qualquer democracia liberal. Desmoralizou o Judiciário, ignorou o princípio da impessoalidade no exercício da Presidência, cometeu seguidos abusos de poder, fez uso da máquina pública para fins privados, desrespeitou a oposição e a imprensa e envenenou o debate público com desinformação e obscurantismo messiânico.

Não é possível, portanto, dizer-se favorável à democracia liberal e, ao mesmo tempo, apoiar Jair Bolsonaro – cuja noção de democracia, como é público e notório, é a de um regime no qual prevalece a lei do mais forte e que somente a “maioria” tem direitos, como ele próprio disse várias vezes, inclusive na condição de presidente: em julho deste ano, por exemplo, durante encontro com evangélicos em Juiz de Fora (MG), Bolsonaro declarou que “as leis existem para proteger as maiorias” e, no seu entender, “as minorias têm de se adequar”. Eis a descrição de um regime autoritário, e não democrático.

Este jornal foi fundado há quase 148 anos para servir como refúgio para os defensores do regime republicano, que tem a igualdade de todos perante a lei como espinha dorsal. Ao contrário do que pensa Bolsonaro, as leis não existem para respaldar a opressão da minoria pela maioria; existem, entre outras razões, para limitar o poder de governantes autoritários como ele, a fim de que viceje uma sociedade livre, plural e vibrante. É sobre esse firme arrimo que foi erigido o Estado Democrático de Direito consagrado desde o preâmbulo da Carta de 1988.

Entre os eleitores de Lula, o apoio à democracia é também bastante alto (78%). Porém, o passado recente do petista tampouco permite enxergá-lo como um ardoroso defensor da democracia liberal. Apenas para citar um exemplo, o que é o pagamento de mesadas a parlamentares em troca de apoio político se não uma completa subversão da democracia representativa? E o que dizer do apoio entusiasmado de Lula e dos petistas a ditaduras esquerdistas da América Latina? Se, como disse Lula, há “excesso de democracia” na Venezuela chavista, há razões para acreditar que a democracia a que Lula se refere não é a mesma que este jornal defende há mais de um século.

É nessa encruzilhada que o País se encontra. Ainda que a ampla maioria da sociedade apoie a democracia – e isso conforta, como dissemos –, há um longo e tortuoso caminho de aprendizado e amadurecimento cívico dos cidadãos. Oxalá essa trajetória um dia propicie melhores decisões políticas no futuro. Só assim o Brasil poderá experimentar, de fato, uma democracia plena, em que todos os cidadãos se sintam contemplados pelas inúmeras virtudes que ela tem sobre todas as outras formas de governo.

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