Editorial do Estadão, 02/01/2024

 Mudanças climáticas e a demonização do agro


Como todo setor, o agro tem muitos problemas, mas, como bem salientou Roberto Azevêdo, ver a produção de alimentos como algoz internacional das emissões de carbono só pode ser má-fé



Ex-presidente da Organização Mundial do Comércio, o embaixador Roberto Azevêdo concedeu entrevista recente ao Estadão em que oferece lições cristalinas para quem ainda enxerga o agronegócio como o dragão da maldade das mudanças climáticas. Assumindo a defesa do agronegócio brasileiro na COP-28, Azevêdo mirou na distorção do debate gerado pelas pressões internacionais, sobretudo europeias, sobre a produção do campo e os sistemas alimentares, e as exigências de compradores para estabelecer conformidade de produtos com padrões ambientais. Deve-se prestar atenção a seus argumentos, relevantes não só para rebater as reticências internacionais, mas, sobretudo, para desfazer mitos aqui mesmo no Brasil, onde imperam ideologias simplificadoras, desinformação e visões rupestres sobre o campo.

Como lembrou o diplomata, o agronegócio é o primeiro a ser afetado pelas mudanças climáticas: “Safras que eram viáveis antes agora não são mais. Modelos de negócios podem mudar drasticamente a depender do paralelo (geográfico) em que você está situado. Os regimes de chuvas mudaram”. O impacto é brutal, e o setor não só está perfeitamente consciente dessa realidade, conforme sublinhou Azevêdo, como também demonstra capacidade de continuar plantando, produzindo e sequestrando carbono ao mesmo tempo, sem derrubar árvores. Se é verdade que o debate internacional relacionado às mudanças climáticas está legitimamente centrado no controle das emissões de carbono, também é verdade que precisamos escolher e qualificar os inimigos no enfrentamento dessa agenda. Se é verdade que reduzir ou zerar os níveis de desmatamento é o melhor remédio para a redução das emissões, também é verdade que nem todo desmatamento tem o agronegócio como seu agente.

Enquanto as cassandras ideológicas gritam, não é somente o agronegócio que perde: é o Brasil. Não é demais lembrar que o setor responde por 24% do PIB brasileiro, e seu negócio, ao contrário do que pensa boa parte dos exércitos ambientalistas, não é desmatar, e sim transitar de forma decidida – e decisiva – para a agricultura de pegada negativa de carbono. A paisagem no campo e o bolso dos produtores rurais são intensamente afetados pelas mudanças climáticas. Estiagens atípicas, plantios prejudicados pelo excesso de chuvas no Sul, secas severas no Nordeste e até mesmo no Norte, região conhecida pela abundância de água, são todos fenômenos extremos prejudiciais aos negócios, bem como as práticas que contaminam a conservação e a reabilitação dos sistemas alimentares e agrícolas.

Enquanto os países europeus usam a propaganda negativa sobre o agronegócio brasileiro para justificar as barreiras protecionistas, Roberto Azevêdo sugeriu ao Brasil agir com sabedoria, reunindo países que enfrentam problemas similares para que os custos da transição verde não sejam transferidos para as nações mais pobres – evitando, é claro, relacionar essa iniciativa à patacoada lulopetista do tal “Sul Global”. Primeiro, é preciso que o Brasil tenha unidade de propósitos. O governo tem nada menos do que 17 Ministérios que, direta ou indiretamente, se ocupam de questões ambientais, e no entanto sua soma produz quase sempre apenas falatório e fragmentação, reduzindo consideravelmente nossa musculatura comercial e diplomática. Noves fora a defesa que a diplomacia nacional faz dos negócios do Brasil nos fóruns globais, o resultado geral é basicamente a demonização do aronegócio.

A língua presidencial não ajuda, como ficou evidente na recente declaração de Lula da Silva sobre raposas e galinheiros na pauta do marco temporal para demarcação de terras indígenas. Também não ajuda atacar o agronegócio na prova do Enem. São dois exemplos, entre tantos, de uma mesma visão anacrônica sobre o agronegócio, o que só ajuda a consolidar a situação “surreal”, nas palavras de Roberto Azevêdo, em que “o que era para ser o controle das emissões de carbono de repente agora é controlar os sistemas alimentares, uma coisa inacreditável”. Como bem disse o diplomata, “uma narrativa que ignora o sistema energético e a queima de combustível fóssil e o foco vem para o sistema alimentar só pode ser mal-intencionada”.

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