Artigo de André Lajst, O Globo, 21/01/2024

Conflito no Oriente Médio, a visão israelense: A cabeça de Adir e a Guerra em Gaza. 


Decapitação de soldado revela que paz só virá com derrota do Hamas


No dia do enterro de Adir Tahar, no cemitério do Monte Herzl, o caixão chegou fechado. A morte do jovem, que servia numa base da Brigada Golani, perto da fronteira com a Faixa de Gaza, foi confirmada pelas Forças de Defesa de Israel (FDI) juntamente à de outros 15 soldados, numa das tantas listas de vítimas que se atualizavam a toda hora desde o fatídico 7 de outubro. Ele e seus companheiros tinham caído em combate quando tentavam proteger os moradores da vizinhança, famílias inteiras que estavam sendo massacradas a sangue frio. No local onde morreu, eram 18 soldados contra centenas de terroristas do Hamas, mas lutaram até o fim.


Adir era de Jerusalém; tinha 19 anos. Foi um dos 1.200 israelenses mortos naquele dia, na maior matança de judeus por serem judeus desde o Holocausto nazista.


Antes do enterro, o pai foi avisado: não era uma boa ideia, mas ele insistiu: queria ver o filho pela última vez. Enterrar um soldado de caixão fechado não é raro, porque a morte de um militar em combate pode deixar o corpo em condições que a família não deveria ter de lembrar pelo resto da vida. E o que David viu quando abriram o caixão foi muito mais que qualquer guerra poderia ter provocado. Depois de morto, o rapaz tinha sido decapitado, e os terroristas tinham levado a cabeça para Gaza, também ela, de refém. “Sepultei meu filho sem rosto, então tive de continuar procurando”, contou o pai dias atrás na televisão israelense.


Adir era soldado, mas ainda não havia guerra, nem estava sequer prevista. No dia anterior, ele não tinha motivos para achar que poderia morrer, muito menos dessa forma, com duas partes do corpo separadas por quilômetros. Quando ele e seus companheiros foram atingidos por granadas, estavam em seu próprio país, mobilizados de urgência para salvar vidas de civis, seus compatriotas, que eram caçados nas ruas ou casa por casa. A tiros, a facadas, sem piedade. Homens, mulheres, idosos e crianças. Até cachorros foram executados, enquanto os terroristas, em êxtase, filmavam tudo e postavam nas redes sociais.


A história da cabeça roubada de Adir não é apenas macabra. É, também, um curso rápido para entender o tipo de guerra que Israel, sem ter buscado, está lutando — e o tipo de inimigo que enfrenta. Ela não foi apenas cortada e levada como troféu. Dois terroristas, capturados semanas depois por Israel, confessaram que um deles tinha tentado vendê-la por US$ 10 mil. Não conseguiu, então deixou no freezer de uma sorveteria de Gaza, dentro de uma mala, onde as FDI a achariam meses depois. Só então foi enterrada com o resto do corpo.


Não foi um caso isolado. Em apenas algumas horas, enquanto milhares de foguetes eram lançados contra diferentes cidades israelenses com o único objetivo de matar civis, os terroristas do Hamas que invadiram o sul de Israel fizeram muito mais que assassinar pessoas inocentes como esporte, chegando ao ponto de perseguir famílias inteiras até o terraço da própria casa para garantir que ninguém fugisse da execução. Em alguns kibutzim e vilas próximas à fronteira, mais da metade da população foi aniquilada.


Vários jovens brasileiros estavam entre os mais de 300 que foram perseguidos a tiros como num videogame, numa festa de música eletrônica ao ar livre. Estavam dançando, bebendo, se divertindo, sem imaginar que morreriam. E, além disso tudo, os terroristas estupraram mulheres, torturaram crianças na frente dos pais, e pais na frente das crianças, incendiaram casas com gente dentro, queimaram pessoas vivas e cadáveres, cortaram cabeças, vandalizaram corpos, abriram o ventre de uma mulher grávida para tirar o bebê e decapitá-lo e, no final, fugiram de volta para Gaza com mais de 200 reféns, entre eles, mais de 30 crianças e bebês e uma avó de 85 anos.


Não, ainda não havia guerra. Todas as vítimas estavam no próprio país, sem fazer mal a ninguém. Gaza não estava ocupada, mas nas mãos dos palestinos, governada pelo Hamas.


Depois que a guerra começou, os reféns que foram libertados durante a trégua que Israel respeitou e o Hamas, como sempre, acabou quebrando, relataram ter sofrido torturas e abusos sexuais durante o cativeiro. Mais de cem sequestrados permanecem ainda em algum túnel ou esconderijo, usados como escudos humanos para proteger lideranças terroristas.


É contra tudo isso que Israel está em guerra, para que nunca mais aconteça. “Vamos fazer de novo e de novo. Esta foi a primeira vez, e haverá uma segunda, uma terceira e uma quarta”, disse Ghazi Hamad, um dos líderes do Hamas, na televisão, pouco depois do ataque. E frisou que não parariam até a “aniquilação” de Israel, mesmo que para isso tivessem de pagar “um preço”, já que são, com orgulho, uma “nação de mártires”. “Ninguém pode nos culpar pelas coisas que fazemos. Em 7 de outubro, 10 de outubro ou 1.000.000 de outubro, tudo está justificado”, acrescentou. A mensagem não deixava alternativa.
 

Desde aquele massacre, mesmo não desejada, a guerra era inevitável para o Estado judeu. Mais de 200 mil pessoas precisaram ser deslocadas no país por morarem perto de fronteiras que já não eram mais seguras — não apenas com Gaza, no sul, mas também com o Líbano, no norte, onde atua o Hezbollah, outro proxy do regime iraniano mais forte que o Hamas — ou em cidades que poderiam ser atingidas por foguetes quando a capacidade de resposta do Domo de Ferro é ultrapassada. Milhões, em todo o país, precisam correr várias vezes por semana para os refúgios cada vez que as sirenes da cidade alertam sobre um ataque aéreo desde Gaza ou Líbano.


E esse é, há meses, o cotidiano de todo um país que precisa se defender, numa guerra que não iniciou. Por isso, apesar da longa crise política que, até 7 de outubro, encabeçava as preocupações dos israelenses, depois de meses de protestos em massa da oposição ao governo do primeiro-ministro Benjamim Netanyahu, o país se uniu para enfrentar a ameaça mais grave à sua existência desde 1948, quando lutou por sua independência. Inclusive a população árabe-israelense — que constitui 20% dos habitantes do país — se sente mais parte de Israel que nunca na História, segundo as pesquisas, e muitos colaboram em ações solidárias e mutirões para ajudar as vítimas e apoiar os soldados, além dos próprios árabes-israelenses que servem no Exercito do país.


Foram muitas guerras desde aquela que garantiu o nascimento do Estado de Israel, poucos anos depois do Holocausto, depois do plano de partilha da ONU que os países árabes rejeitaram: em 1956, 1967, 1973, 1982, 2006 e, desde que o Hamas deu o golpe contra o governo da Autoridade Nacional Palestina (ANP) e instaurou uma ditadura militar em Gaza, em 2007, outras tantas de menor intensidade contra o grupo terrorista e seus aliados da Jihad Islâmica.


Cada guerra encontra cada família com filhos e filhas no front, aumenta a insegurança de todos e abala a economia. Ninguém deseja tanto o cessar-fogo — que exigem pessoas bem intencionadas e outras nem tanto ao redor do mundo, como se fosse tão fácil — quanto as mães dos milhares de soldados e reservistas enviados para Gaza, muitos deles garotos como Adir que arriscam a vida. Contudo, Israel não tem como sair daquele território até ter resgatado os reféns e garantido que o Hamas não possa, nunca mais, fazer o que fez no dia 7/10. Nunca mais é agora.


Quando esse objetivo militar for atingido, Israel também não tem qualquer motivo para ficar ou voltar a governar a Faixa de Gaza, e nem quer. Mesmo que aqui no Brasil, a milhares de quilômetros e em outra língua, muita gente convencida de estar do lado certo não saiba — porque desconhece a História e as complexidades do conflito israelo-palestino — faz quase duas décadas que Israel saiu de lá, em 2005. Desde o dia 22 de agosto daquele ano, não há um só judeu morando lá, muito menos soldados israelenses. Ninguém queria voltar.


A retirada, sem qualquer contrapartida, ocorreu depois de muitos intentos falidos de alcançar a paz por meio do diálogo com os palestinos. Em 2000, em Camp David, o primeiro-ministro Ehud Barak, numa negociação mediada por Bill Clinton, ofereceu ao então líder da Organização para a Libertação da Palestina, Yasser Arafat, a criação de um Estado palestino num território que compreenderia quase toda a Cisjordânia, toda Gaza e parte de Jerusalém Oriental, além de investimentos, apoio internacional e outras garantias, mas Arafat não aceitou.


Em 2008, seu sucessor e presidente “vitalício” de uma ANP que já não faz eleições, Mahmoud Abbas, rejeitou nova oferta, tão ousada quanto, de Ehud Olmert. Cada proposta de paz de Israel foi recebida pelos grupos terroristas palestinos com bombas, esfaqueamentos e atentados suicidas — e, pelas lideranças que se esperava fossem moderadas, com maximalismo, enrolação e negativas. Antes daquela última tentativa de Olmert, Ariel Sharon decidiu, em 2005, dar um passo enorme, sem condições: a retirada unilateral daquele território com vista ao mar, conquistado do Egito na Guerra dos Seis Dias (1967), que hoje poderia ser uma terra próspera.


Quem ler hoje o discurso em que Sharon — um ex-general que combateu em várias guerras e era o líder do direitista Likud — defendeu seu plano pela primeira vez, numa conferência celebrada em 2003 em Herzliya, talvez se surpreenda ao perceber o tamanho da oportunidade perdida. Ele defendeu a solução de dois Estados, e disse: “Aproveito esta oportunidade para apelar aos palestinos e repetir: não é do nosso interesse governá-los. Gostaríamos que vocês se autogovernassem em seu próprio país. Um Estado palestino democrático com contiguidade territorial e viabilidade econômica, que conduziria a relações normais de tranquilidade, segurança e paz com Israel.”


Para provar sua intenção de avançar nessa direção, mas advertindo também que Israel não ficaria para sempre esperando que os palestinos abandonassem o terror e se sentassem a negociar a paz, ele anunciou que Israel sairia de Gaza por decisão própria. Dois anos depois, todos os soldados israelenses abandonaram a Faixa e, com eles, até o último judeu. Sharon deu as chaves para a ANP, que as perdeu dois anos depois, com violência, para o Hamas.


Desde então, são eles que governam esse território. Já receberam bilhões de dólares de ajuda internacional que, em vez de ser usada para construir infraestrutura, abrir escolas, hospitais e universidades, criar emprego, desenvolver a economia e melhorar a vida dos palestinos, apenas serviu para fazer túneis e foguetes e financiar ataques terroristas contra Israel. É mentira que Gaza fosse uma prisão a céu aberto, mas é verdade que sofria restrições a entrada e saída por razões de segurança, que Israel foi flexibilizando nos últimos anos — diferentemente do Egito, sua outra fronteira —, a ponto de permitir diariamente o ingresso de milhares de palestinos para trabalhar ou receber atendimento em hospitais israelenses.


Se alguém duvidasse dos motivos dessas restrições, a resposta foi dada no dia 7/10. Por isso, a única maneira de chegar a um cessar-fogo duradouro, que não seja apenas para que Hamas se rearme para atacar de novo, e de novo, e de novo, é mudar esse quadro definitivamente.


É isso que Israel está tentando fazer, com acertos e erros, em condições extremamente difíceis. A história da cabeça do soldado Adir é reveladora do desprezo que o Hamas tem pela vida dos judeus, mas, ao mesmo tempo, o que acontece hoje em Gaza revela também seu desprezo pela vida dos palestinos. Todos os esforços que o Exército israelense, um dos mais profissionais do mundo, faz a cada dia para proteger os civis palestinos e afastá-los do combate, infelizmente, são boicotados pela ação deliberada do grupo terrorista, que, como disse seu porta-voz, tem orgulho de fazer parte de “uma nação de mártires”.


Seus combatentes se escondem entre civis, usam túneis em cidades com milhares de habitantes, tomam civis como escudos humanos, prédios e casas de civis como esconderijos, e hospitais, escolas ou mesquitas como quartéis ou depósitos de armas. É por isso que Israel tem usado apenas pequena parte do seu poder de fogo: para minimizar o número de mortes. Enfrenta, porém, terroristas que desprezam a vida e tentam maximizá-lo. Não é um confronto normal, entre dois exércitos regulares, profissionais e respeitosos da lei internacional. A combinação entre a força bélica assimétrica e a tática imoral de combate do Hamas faz dessa a pior guerra em território urbano da História.


Todos queremos que a guerra acabe logo, mas não é com palavras de ordem e discursos simplistas que conseguiremos. Todas as famílias, de um lado e do outro, querem voltar a ter os seus em casa — também os reféns — e o mundo precisa ajudar a que seja possível. Israel tem avançado muito, nos últimos anos, no restabelecimento de relações de paz e cooperação com os países árabes, mas foi obrigado a ir a uma guerra que não é, e nunca será, contra os palestinos, mas contra um grupo terrorista que é, também, inimigo deles.


A derrota do Hamas deveria ser uma oportunidade. Para retomar o caminho do diálogo entre quem quiser dialogar. Para buscar até alcançar, por fim, a normalidade e a coexistência. Para entender, por fim, que nem os palestinos, nem os judeus desaparecerão ou sairão daquela terra, e que não há soluções mágicas. A única é ser, ao menos, bons vizinhos, mesmo que numa vizinhança onde isso não é o habitual.

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