Segundo editorial do Estadão, 19/03/2023

 

A Argentina beira o abismo – de novo

Opinião do Estadão

Imagem ex-libris

A realidade é dura, mas é a realidade. Se não a aceitar e parar de congelar preços e imprimir pesos para cobrir gastos, o país seguirá no labirinto de seu pesadelo inflacionário

“Se você sair da Argentina e voltar em 20 dias, tudo terá mudado; se voltar em 20 anos, nada terá mudado.” As estatísticas oficiais confirmam o chiste, só que não são engraçadas: a inflação ultrapassou 100%, uma das maiores do mundo e a mais alta e mais acelerada desde a hiperinflação dos anos 80. “A fonte principal da inflação são os gastos deficitários do governo, financiados por empréstimos do banco central”, alertou o FMI – em 1958.

Mais estonteante que a capacidade do país de reeditar erros é a de desperdiçar seu potencial. No início do século 20, as exportações de carne e grãos lhe conferiam uma das maiores rendas per capita do mundo. Hoje, ainda goza de uma portentosa produção agrícola, está sentado sobre imensas reservas de xisto e lítio e tem um setor de tecnologia responsável pelo mais bem-sucedido e-commerce da América Latina. Mas o mesmo pensamento mágico que dilapidou a belle époque argentina sufoca as possibilidades de revivê-la. Há décadas a confiança excessiva nas exportações de commodities, aliada a gastos públicos insustentáveis, dispara ciclos de euforia e depressão que perpetuam a instabilidade política e o declínio econômico.

Para evitar colapsos nas turbulências, sucessivos governos deram calote em seus credores. Nos anos 90, Carlos Menem adotou alguma ortodoxia econômica e o capital voltou a circular, mas logo foi drenado por políticas fiscais frouxas, levando a uma nova debacle em 2001. O resgate veio pelo superciclo das commodities. Os governos peronistas voltaram a distribuir copiosos auxílios e subsídios. Findo o ciclo, a barca furada voltou a fazer água. Novos calotes se seguiram e, de novo, o país perdeu acesso aos créditos internacionais.

Para restaurá-lo, Mauricio Macri logrou, em 2018, um empréstimo de US$ 57 bilhões do FMI e fez reformas de austeridade. Mas poucas e tardias. Os sinais de estabilização evaporaram quando um novo governo peronista, de Alberto Fernández, retomou subsídios, congelamentos de preços, muita impressão de dinheiro para custear gastos do governo e mais calotes.

Para piorar, o FMI, que, num tango excruciantemente infindável, sempre foi o renitente cobrador de austeridade e racionalidade de um renitente devedor perdulário, dá sinais de fadiga, adotando a indulgência de certos consortes de alcoólatras. Nas últimas negociações, ele fez pouco para disciplinar o vício argentino da “inconsistência entre um ambicioso Estado de Bem-Estar Social e a falta de acordo social sobre como financiá-lo”, que, segundo o ex-diretor do FMI Alejandro Werner, “levou à instabilidade macroeconômica, à variedade de controles que minam o setor privado e à falta de previsibilidade da política regulatória”. Juntos, “esses elementos formam um status quo econômico letal”. O inimigo público do peronismo tornou-se, segundo ironizou o jornal La Nación, a “Thelma no Ford Thunderbird que Louise acelera até o abismo”, referindo-se ao filme Thelma & Louise.

Não há saída indolor. Para despertar do transe, a Argentina precisa de uma terapia de choque. Menos dolorosa, mas menos eficaz, seria a via gradualista. Mas ambas, sobretudo a primeira, exigem clareza, resolução e capital político. O governo não tem nada disso e, em ano eleitoral, não quer forçar ingestões amargas, ainda que de um remédio vital. “É como o dilema do bonde”, disse o ex-economista-chefe do banco central Eduardo Levy. “Ninguém quer apertar o botão vermelho.” Espera-se que o eleitorado aperte o botão de ejeção do peronismo, substituindo-o por alguém com coragem para fazer o que precisa ser feito. Até lá, os desgraçados nos trilhos do bonde aumentarão.

O drama argentino é uma advertência às nações que arriscam entregar a populistas um Estado sem controles fiscais. No Brasil, o último presidente depredou o teto de gastos que o atual considera uma “estupidez”. Seu ministro da Economia promete um novo arcabouço, mas, enquanto isso, o céu é o limite e o Brasil navega águas tormentosas sem uma âncora. Se ele está longe do abismo beirado pela Argentina, não significa que não siga na mesma direção.


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