Editorial do Estadão, 17/11/2022

 Alimentando a crise moral


Lula em jatinho de empresário suspeito, ministro do STF falando de política, FA dando recado ao poder civil, protestos antidemocráticos: o País normaliza o intolerável


Notas&Informações, O Estado de S.Paulo
17 de novembro de 2022 | 03h00


O País precisa de paz e serenidade. É urgente a tarefa de pacificação e reconstrução nacional. Diante disso, os principais atores políticos precisam se esforçar um pouco mais para desarmar os espíritos. Devem, sobretudo, dar o bom exemplo de respeito tanto às leis quanto aos padrões éticos, medindo as consequências de seus atos e palavras. Alguns acontecimentos recentes, no entanto, mostram que estamos longe de superar a crise moral que tomou o País de uns anos para cá e que leva cidadãos comuns a acreditar que tudo podem.

As eleições indicaram que parte considerável da população – no mínimo 58 milhões de eleitores – continua tendo sérias restrições ao comportamento do petista Lula da Silva. O que faz então o presidente eleito? Em sua primeira viagem internacional após as eleições, Lula foi à COP-27, no Egito, no jatinho particular de um empresário enrolado na Justiça. O entorno do petista tratou de minimizar a polêmica ao dizer que Lula ainda não é presidente e que não houve nada de ilegal. É verdade, mas a carona está longe de constituir a atitude de um presidente eleito que tem pela frente a missão de mostrar ao País que os interesses nacionais vão finalmente se sobrepor aos interesses privados. Como diz a frase atribuída ao imperador romano Júlio César, à mulher de César não basta ser honesta, é preciso que pareça honesta.

Enquanto isso, em Nova York, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), assediado por um bolsonarista que questionava a lisura das eleições, perdeu a compostura. “Perdeu, mané, não amola”, disse Barroso, referindo-se à derrota de Jair Bolsonaro nas eleições. Não são necessárias especiais considerações sobre o papel da Corte constitucional – e os ataques e incompreensões que vêm sofrendo – para dar-se conta de que um ministro do STF deve se abster de qualquer manifestação que possa expressar uma posição política – ou ser assim entendida. É compreensível a irritação do ministro, mas quem tem um cargo público não pode responder prescindindo do fato de ter um múnus público.


Nessa desordem se enquadra também a nota dos comandantes da Aeronáutica, do Exército e da Marinha sobre as manifestações contrárias ao resultado das eleições. Como já tivemos a oportunidade de dizer neste espaço (ver o editorial Uma nota que não deveria existir, 12/11), o Alto-Comando não tem competência para dar recados às instituições democráticas nem à população. No Estado Democrático de Direito, as Forças Armadas (FA) têm de ficar caladas sobre temas civis. Devem ser o Grande Mudo. E não existe circunstância, por mais excepcional que seja, a autorizar atitude diferente.

Deve-se reconhecer, no entanto, que a confusão não se dá apenas no âmbito das autoridades públicas. Inconformados com a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro, não poucos brasileiros têm ido às ruas clamar por resistência e intervenção militar. São pessoas que se consideram democráticas, participaram da campanha eleitoral, elegeram senadores, deputados federais, governadores e deputados estaduais, mas, porque seu candidato presidencial perdeu a eleição, acham-se no direito de pedir às Forças Armadas que interfiram no funcionamento do regime democrático. Ou seja, para essa turma, a democracia só vale em caso de vitória do seu candidato.

Para piorar, as manifestações antidemocráticas têm sido acolhidas, por parte de lideranças civis e políticas, numa aura de legitimidade rigorosamente contrária ao Estado Democrático de Direito. No Brasil, há liberdade de expressão e de associação, mas não há liberdade para resistir à vontade das urnas, para que uma minoria tente impor sua vontade, para que alguns inventem pretexto para atuação fora dos trilhos institucionais. É preciso chamar as coisas pelo seu nome. Não existe patriotismo quando este se afigura antidemocrático. Os verdadeiros patriotas respeitam o resultado das urnas e as atribuições constitucionais das Forças Armadas, pois não há Pátria à margem da lei.

A paz de que o País tanto precisa virá da responsabilidade efetiva com o interesse público. O mau comportamento de um não pode ser desculpa para o outro agir igualmente mal. É tempo de exemplaridade, não de exceções.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Artigo de André Lajst, O Globo, 21/01/2024

Artigo de Natália Pasternak, O Globo, 21/08/2023

Artigo de Carlos Andreazza, O Globo, 02/06/2023