Artigo de Cora Rónai, O Globo, 17/11/2022

'Perdeu, mané, não amola'


O Brasil anda tão sem rumo quanto a nau que colidiu com a Ponte Rio-Niterói. O país é uma piada pronta, uma metáfora de 52 mil toneladas


17/11/2022 04h30 Atualizado 17/11/2022


Não sei vocês, mas eu, a despeito de ter escrito uma coluna inteira sobre gato na semana passada, estou me sentindo a um passo da borda da Terra plana, num cenário de fim de mundo digno de virada de milênio, com choro, ranger de dentes e procissões de penitentes se açoitando uns aos outros, ao mais fino Monty Python. Tudo está muito esquisito, e o tempo não ajuda: já é novembro, mas ainda outro dia choveu gelo. É para sair de casaco? É para levar guarda-chuva?

A guerra contra a Ucrânia, que era para durar uma semana, desandou e sobrou para a Polônia, mas, apesar das manchetes alarmistas e da aflição da vizinhança, ninguém mais está prestando atenção, porque ninguém consegue mais prestar atenção a nada que dure mais do que meia dúzia de episódios.

O roteiro da Covid vai pela mesma linha.

Somos oito bilhões de seres humanos num planeta devastado (que, no entanto, continua produzindo um pôr do sol mais lindo do que o outro, basta conferir no WhatsApp).

As grandes empresas de tecnologia vêm demitindo funcionários aos milhares, o que significa ainda mais ruído na comunicação, e uma proliferação nunca vista de fake news. Preparem-se.

O Instagram está péssimo, o Facebook, bichado, o Twitter se desmancha nas mãos de Elon Musk. Só o TikTok é uma festa, mas o TikTok é o chupa-cabra da produtividade (e da criatividade) humana. Orkut Buyukkokten esteve em São Paulo anteontem e prometeu lançar uma nova rede social, mas todo mundo sabe que nada será como antes.

Nada será como antes.

O Brasil anda tão desgovernado quanto a nau sem rumo que colidiu com a Ponte Rio-Niterói. É muito clichê dizer isso, mas o Brasil é uma piada pronta, uma metáfora de 52 mil toneladas.

O presidente sumiu, o que em si nem é tão ruim — na verdade, é até ótimo — mas, vira e mexe, um general sai da tumba e solta uma nota golpista.

Não se tem um dia de paz.

Milhares de pessoas de verde e amarelo andam desorientadas pelo país, pedindo intervenção militar diante dos quartéis e dando demonstrações consistentes de insanidade: uma hora é um desacertado grudado na frente de um caminhão, outra um jogral de senhoras equivocadas, depois um cidadão gritando por socorro diante do Tiro de Guerra a plenos pulmões, como se houvesse socorro possível a quem saiu de tal forma da casinha.

Vocês não viram? Procurem no Google. Certas coisas devem ser vistas, nem que seja por dever cívico.

A picanha que Lula prometeu nos seus discursos se adiantou no tempo e no espaço e está sendo fartamente servida nos acampamentos golpistas, todos muito organizados, com bandeiras, cartazes e refeições abundantes e gratuitas para que os patriotas não passem necessidade.

Há muitos vídeos, muita gente, muita comédia involuntária (e sinistra). Muita picanha. Toneladas de frutas. Em Brasília, entre o café da manhã e o almoço (na barraca central, com horários bem estabelecidos), havia também palavras de ordem:

“Cabeça de ovo, supremo é o povo!”

Eu tinha a impressão de que o povo já tinha se manifestado nas urnas, mas no universo paralelo em que civis pedem intervenção militar tudo é possível.

Enquanto isso, em Nova York, o ministro Luís Roberto Barroso (a quem devemos o eterno “Mistura do mal com atraso, com pitadas de psicopatia”) resumiu tudo em quatro singelas palavras.

Obrigada, ministro. O senhor me representa.

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