A voz da sensatez
O valor de uma conversa
telefônica
05 de maio de 2012 | 3h 05
Ali Mazloum - O Estado de S.Paulo
Diante dos
seletivos vazamentos do produto de interceptações telefônicas ocorridos no
curso das investigações criminais, reveladas a partir da Operação Monte Carlo,
que apuram as atividades de Carlos Augusto de Almeida Ramos, o Carlinhos
Cachoeira, é de indagar qual seria o valor das conversas captadas com
autorização judicial. Em outros termos, tirante o alto teor explosivo do
material exposto às luzes midiáticas, os diálogos constituem prova no processo
penal?
Impende dizer que
uma conversa telefônica regularmente captada não tem a natureza de prova em si
mesma, mas constitui um meio de obtenção de prova. Assinale-se a diferença: os
meios de prova são os elementos de que o julgador se pode servir para formar
sua convicção acerca de um fato, ao passo que meios de obtenção de prova são
instrumentos de que se servem as autoridades judiciárias para investigar e
recolher meios de provas.
Para o Direito, a
espetacularização de uma operação policial não muda conceitos. Nesse sentido, a
classificação do crime em material, formal e de mera conduta se revela
importante mecanismo de valoração da prova. Assim, por exemplo, uma conversa
telefônica envolvendo cocaína não comprova o tráfico de drogas. Falta a
materialidade do delito. A partir das conversas cabe à polícia diligenciar com
o fito de apreender a droga. O diálogo não é a prova, mas apenas um meio para a
sua obtenção.
Se essa conclusão
se aplica às conversas captadas entre investigados, o que dizer, então, quando
os interlocutores fazem referências a uma terceira pessoa? Tais conversas nem
de longe indicam envolvimento do terceiro. Uma conversa sobre terceira pessoa,
ilhada, sem amparo em lastros investigativos, continuará sendo apenas uma
conversa, nem mais, nem menos. Um plus deveria vir em auxílio ao diálogo. Caso
contrário, o terceiro continuará sendo apenas um terceiro alheio ao apuratório
e o objeto da conversa, mera bazófia - um indiferente penal.
Calha registrar,
pois, que nos crimes materiais, em que se estabelece um resultado
naturalístico, a consumação só ocorre com a verificação do evento natural,
conforme exemplificado acima com a negociação de drogas. Nos crimes formais
prevêem-se ação e resultado, mas a consumação independe do evento natural, como
são exemplos a concussão, o tráfico de influência, a exploração de prestígio ou
a quadrilha. A constatação de tais delitos se fará mediante incursões das
investigações para além das palavras ditas ao telefone.
Por último, nos
delitos de mera conduta não se exige nenhum resultado naturalístico,
contentando-se o tipo penal com a simples atividade do agente - ação ou omissão
(exemplos: violação de domicílio, alguns crimes de palavra, etc.). Nessa
hipótese, e apenas nessa hipótese, poderá a própria conversa telefônica
configurar eventualmente o crime por consubstanciar o corpus delicti, tal qual
a ameaça feita ao telefone (embora saibamos da impossibilidade de se deferirem
escutas nos delitos menos graves, como esse).
A interceptação,
como meio de obtenção de prova, serve para nortear o trabalho policial, nada
mais que isso. Para que tenha efetividade uma investigação não pode ficar
limitada à exibição impactante de material sigiloso. Deve sair a campo para
demonstrar que no mundo real existem fatos que correspondem ao teor das
conversas interceptadas. Caso contrário, ter-se-á mera destruição de reputações
sem nenhuma condenação criminal.
O bombardeio diário
com diálogos telefônicos picantes exibidos não mais pelos meios convencionais
de imprensa apenas, mas por toda a blogosfera, cujo alcance é praticamente
ilimitado, pode ser devastador caso o Judiciário tenha a "coragem" de
entender inexistentes provas materiais dos propalados malfeitos. A expectativa
criada na população é de veredicto condenatório, cadeia!
Terão os juízes
independência para decidir tecnicamente na arena forense do clamor público?
Haverá magistrados dispostos a verem o seu nome lançado no patíbulo da
ignomínia? Espero que sim!
Em Origens do
Totalitarismo, Hannah Arendt desvela com muita propriedade regimes que usam o
Estado como mera fachada externa para representar o país perante o mundo
democrático. Direitos fundamentais, como a presunção de inocência, a ampla
defesa, o devido processo legal, são utilizados como estandarte, atrás do qual
vigem verdadeiros métodos de incrível perversidade, com tratamentos degradantes
e julgamentos sumários. Esse não é o meu país!
Todos querem um
Brasil mais justo, mas não à custa de ilegalidades, do degredo de inocentes, do
aviltamento de direitos civis. É preciso serenar o clamor das ruas provocado
pelas malsinadas conversas ao telefone. Aguardem-se as provas e contraprovas, o
direito inalienável de defesa, o curso natural do processo democrático. A
democracia vale muito mais que qualquer conversa telefônica!
É deletéria a
acentuada preocupação da opinião pública exclusivamente com a figura do agente,
materializada em grande medida por meio de suas conversas interceptadas. Com
isso vai ganhando terreno o nazi-fascista Direito Penal do Autor, em detrimento
do fato, do Direito Penal do Fato.
Repita-se: as
escutas telefônicas, utilizadas parcimoniosamente, constituem instrumentos de
extrema valia no processo de produção da prova, mas não podem ser transformadas
em rótulos de culpa colados na testa dos interlocutores. Queremos para nós
mesmos o que estamos servindo aos outros? Então, vamos às provas!
Em tempos de
prejulgamentos, em que todos querem ser juízes e carrascos ao mesmo tempo, é
preciso não só reservar um dos ouvidos para ouvir o outro lado, como também é
indispensável conhecer concretamente as provas dos autos, se é que elas
existem!
JUIZ FEDERAL EM SÃO
PAULO, ESPECIALISTA EM DIREITO PENAL, PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL
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