O supremo descumprimento da constituição
Um texto marginal
10 de maio de 2012 | 3h 07
"Basta ver o
caráter marginal daqueles que se opõem ferozmente a essas políticas...". A
frase, escandida pelo ministro Joaquim Barbosa num aparte casual, contém a
chave para a compreensão da decisão unânime do Supremo Tribunal Federal (STF)
sobre as políticas raciais. Os juízes da Corte Maior não se preocuparam com a
Constituição, mas unicamente com o lugar ocupado pelos defensores e pelos
opositores das cotas raciais na cena política nacional. Eles disseram
"sim" ao poder, definindo seu próprio lugar no grande esquema das
coisas.
Cortes Supremas
servem para interpretar o texto constitucional, nos inúmeros casos em que a
letra da Lei não oferece resposta explícita. No artigo 5.º, a Constituição
afirma que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza". No artigo 19, que "é vedado à União, aos Estados, ao
Distrito Federal e aos municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências
entre si". No artigo 208, que "o dever do Estado com a educação será
efetivado mediante a garantia de acesso aos níveis mais elevados do ensino, da
pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um". A letra
da Lei é explícita, cristalina: dispensa interpretação. O STF, simulando
interpretá-la, reuniu-se em assembleia constituinte e revogou o princípio da
igualdade perante a lei. Os juízes encarregados de zelar pela Constituição
qualificaram-na como um texto marginal.
O princípio da igualdade
perante a lei está formulado nas Constituições americana e indiana em termos
similares aos da nossa. Nos EUA, desde 1978 a Corte Suprema proferiu decisões
cada vez mais contrárias às políticas de preferências raciais. Na Índia, logo
após a independência, a Corte Suprema vetou tais políticas - e então o
Congresso emendou o texto constitucional, descaracterizando o princípio da
igualdade dos cidadãos. Por que, em contraste flagrante, os juízes do STF
preferiram reescrever a Constituição de forma a inscrever a raça na lei?
No Brasil, a
igualdade legal dos cidadãos é um "princípio fraco", introduzido nas
Constituições por imitação. O "princípio forte" sempre foi o das
relações pessoais, fundamento real dos intercâmbios das elites econômica,
política e intelectual. Na lógica do Direito, o princípio da igualdade funciona
como fonte dos direitos e garantias individuais. Tal conexão explica a
importância atribuída ao "princípio fraco" na Constituição de 1988: o
gesto político e jurídico de ruptura com o ciclo da ditadura militar era a
promessa de um novo início, isento das máculas do passado. O STF está dizendo
que aquele gesto representou um desvio de percurso - e já se esgotou. De certo
modo, os juízes têm razão: bem antes da sessão de julgamento das cotas raciais,
as principais correntes políticas do País imolaram o princípio da igualdade no
altar de seus compromissos com as ONGs racialistas, que são minorias
organizadas e influentes.
O conceito de
preferências raciais adquiriu estatuto oficial no governo Fernando Henrique
Cardoso, por meio do Programa Nacional de Direitos Humanos de 1996. No governo
Lula a noção genérica de "discriminação positiva" desdobrou-se na
política de cotas raciais. Dilma Rousseff prometeu, no início de sua campanha
presidencial, expandir os programas de cotas para a pós-graduação. José Serra,
candidato da oposição, manteve silêncio absoluto sobre as políticas de raça,
avalizando tacitamente a orientação do governo Lula. A cooperação objetiva
entre os grandes partidos rivais e a continuidade histórica das iniciativas
racialistas na transição de um governo para o outro formam o pano de fundo da
decisão unânime do STF. Eis a razão por que Joaquim Barbosa, como seus colegas,
enxerga na Constituição um texto "marginal".
O estandarte da igualdade
legal dos cidadãos condensa a narrativa de uma sociedade contratual formada por
indivíduos livres das amarras do sangue e da tradição. A narrativa é a praça
histórica comum aos liberais e aos socialistas. Os primeiros ergueram o
princípio da igualdade no combate aos privilégios de sangue do Antigo Regime.
Os segundos enxergaram nele a ferramenta das lutas pelo voto universal e pela
liberdade de associação e de greve. No Brasil, contudo, essa história quase
nada significa para os partidos que representam as duas correntes. O STF que
aboliu o princípio da igualdade é a Corte Maior de um país onde José Sarney foi
declarado um personagem acima da lei, Fernando Collor pontifica numa CPI sobre
a corrupção e Sérgio Cabral protagoniza cenas dignas do Antigo Regime no palco
apropriado da Cidade Luz.
Na sessão de
julgamento do STF, o relator, Ricardo Lewandowski, alvejou sem rodeios o artigo
5.º da Constituição, atribuindo ao princípio da igualdade um sentido meramente
"formal". O mesmo relator comandou, em 2009, a rejeição do pedido de
instauração de processo contra o ex-ministro Antônio Palocci por violação do
sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa. Meses depois, a Caixa Econômica
Federal informou em juízo que a violação decorreu de ordem emitida por Palocci.
O escárnio do "princípio fraco", da igualdade legal, serve sempre ao
desígnio de instaurar o império do "princípio forte", das relações
pessoais.
O juiz Marco
Aurélio Mello exprimiu a aspiração de generalização das políticas de cotas,
como querem as ONGs racialistas. Num país em que, ao contrário dos EUA ou da
África do Sul, jamais existiu segregação racial oficial, não há fronteira
objetiva separando "brancos" de "negros". A difusão das
preferências raciais nos concursos públicos e no mercado de trabalho em geral
demanda uma série imensa de atos legais e administrativos de rotulação racial
das pessoas. Em nome do combate ao racismo, o Estado deve fabricar raças em
escala nacional, disse o STF. No afã de descartar a Constituição, aquele texto
marginal, nenhum deles registrou a contradição explosiva entre meios e supostos
fins.
* SOCIÓLOGO E
DOUTOR EM GEOGRAFIA HUMANA PELA USP. E-MAIL: DEMETRIO.MAGNOLI@UOL.COM.BR
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