Belo editorial do Estadão
Prisioneiro do
ressentimento
23 de maio de 2012 | 3h 08
Mais velho, mais
sofrido - e nem por isso mais sábio -, o ex-presidente Lula levou para a Câmara
Municipal de São Paulo, onde receberia na segunda-feira o título de Cidadão
Paulistano, as suas obsessões e os seus fantasmas: as elites e o mensalão. Ao
elogiar no seu discurso a gestão da prefeita Marta Suplicy, ele se pôs a
desancar a "parte da elite" de cujo preconceito ela teria sido vítima
"porque ousou governar para os pobres". Marta fez os CEUs (centros
educacionais unificados), exemplificou, para acolher crianças de favelas, algo
inaceitável para aqueles que não querem que os outros sejam "pelo menos
iguais" a eles.
O ressentimento de
que Lula é prisioneiro o impede de aceitar que, numa megalópole como esta, há
de tudo para todos os gostos e desgostos - e não apenas no topo da pirâmide
social. Os que nele se situam, uma população que o tempo e as oportunidades de
ascensão de há muito tornaram heterogênea, não detêm o monopólio do preconceito
de classe. Durante anos, até eleitores mais pobres, portadores, quem sabe, do
proverbial complexo de vira-lata, refugaram a ideia de votar em um candidato
presidencial que, vindo de onde veio e com pouco estudo, teria as mesmas
limitações que viam em si para governar o Brasil.
Lula tampouco
admite, ao menos em público, que dificilmente teria chegado lá se o destino não
o tivesse levado a viver na mais aberta sociedade do País - que também abriga,
repita-se, cabeças egoístas e retrógradas, mas onde o talento, o trabalho e a
perseverança são os mecanismos por excelência de equalização social. Em 1952,
quando a sua mãe o trouxe com alguns de seus irmãos para cá, estava em pleno
andamento, aliás, a substituição das tradicionais elites políticas paulistas
por nomes que expressavam as mutações por que vinha passando desde a 2.ª Guerra
Mundial o perfil demográfico da capital.
Pelo voto popular,
chegaram ao poder descendentes de imigrantes e outros tantos cujas famílias,
vindas de baixo, prosperaram com a industrialização, educaram os filhos e os
integraram, à americana, na renovada estrutura política. O curso natural das
coisas, pode-se dizer, consumou a metamorfose na pessoa do carismático torneiro
mecânico pau de arara ungido presidente da República. No Planalto, é bom que
não se esqueça, ele vergastava as elites nos palanques e se acertava na
política com o que elas têm de pior. Lula se amancebou com expoentes do
coronelato do atraso, do patrimonialismo e da iniquidade - o mesmo estamento
oligárquico que contribuiu para confinar à miséria incontáveis milhões de
nordestinos.
Elas não lhe
faltaram no transe do mensalão - "um momento", repetiu pela enésima
vez o mais novo cidadão paulistano, "em que tentaram dar um golpe neste
país". Na sua versão da história, as elites, a oposição e a mídia só
desistiram de destituí-lo de medo de "enfrentarem o povo nas ruas".
Falso. Lula ainda não havia completado o trajeto da contrição - "eu não
tenho nenhuma vergonha de dizer ao povo brasileiro que nós temos que pedir
desculpas" - à ameaça de apelar ao povo, quando a oposição preferiu não
pedir o seu impeachment para não traumatizar o País pela segunda vez em 13
anos. Pelo menos um dos homens do presidente, ministro de Estado, procurou os líderes
oposicionistas para dissuadi-los da iniciativa.
O estopim foi o
depoimento do marqueteiro de Lula, Duda Mendonça, na CPI dos Correios, em
agosto de 2005. Ele revelou ter recebido em conta que precisou abrir no paraíso
fiscal das Bahamas, a conselho de Marcos Valério, o publicitário que viria a
ser o pivô do mensalão, a soma de R$ 10 milhões pelos serviços prestados três
anos antes à campanha presidencial do petista e ao partido. Afinal, parcela da
bolada já estava no exterior e outra sairia do caixa 2 da agremiação - os
famosos "recursos não contabilizados" que Lula admitiria existir na
reunião ministerial que convocou para o dia seguinte da oitiva de Duda.
Tecnicamente, o PT poderia ter o seu registro cassado, e o presidente poderia
ser afastado, se as elites quisessem levar a ferro e fogo o combate político.
Se conspiração houve, em suma, foi para "deixar pra lá".
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