Para refletir
Existem
países perfeitamente fascistas, sem que se
saiba...
Paulo
Roberto de Almeida
Sei que
a expressão fascista pode parecer extremamente forte, nos dias que correm, para
designar um país, mas é o que me veio à mente, após acumular, mentalmente,
dezenas e dezenas de exemplos banais, corriqueiros, ordinários, redundantes,
enfim, triviais, que confirmam o que afirmo no título deste texto. Minhas
observações, não preciso estender-me a respeito, são retiradas do que leio na
imprensa diária, nas matérias de jornais internacionais, em blogs de formadores
de opinião, e também, por que não dizê-lo?, em boletins partidários e de grupos
políticos, enfim, um pouco de tudo o que leio continuamente, regularmente,
recorrentemente, todos os dias.
Sei
também que os leitores podem achar que estou exagerando, já que, para a maior
parte das pessoas, a expressão “fascista” vem sempre associada à imagem dos
camisas negras, ou milícias armadas, desfilando – a passo de ganso ou em
qualquer outro estilo – sobre fundo de cenários cinzentos, dominados por um
ditador exaltado, fazendo discursos de ódio e incitando a massa do povo contra
um inimigo qualquer. Mas essa é uma vinculação historicamente datada, que
enfatiza mais os movimentos reais que existiram na Europa do entre-guerras (e
por imitação em outras partes do mundo também), do que a essência do “ser
fascista”, que está presente cada vez que alguns dos elementos abaixo domina o
cenário público de um país e penetra nas consciências das pessoas, sem que elas
tenham sequer consciência de que estão vivendo – que sabe até aceitando,
maquinalmente – num país perfeitamente fascista, em sua essência.
Essas
imagens estereotipadas de um regime fascista correspondem apenas à sua
superfície, ou embalagem externa, atualmente um tanto ridículas, sobretudo
depois que Charles Chaplin imortalizou a figura do ditador ridículo em seu filme
explicitamente vinculado a dois exemplos do gênero, mas é claro que
características externas não esgotam a essência do que é ser fascista. Explico
as razões de minha adesão a essa expressão, para que meu título tenha mais
consistência empírica e venha ilustrado por manifestações concretas da realidade
que vivemos, atualmente, em países talvez conhecidos dos leitores. Vejamos
alguns fatos, não opiniões.
Em qual
país, senão num país fascista, o chefe de um dos poderes constitucionais tenta
subordinar, dominar, emascular, castrar ou controlar os demais poderes, usando
para isso de todos os golpes baixos de que é capaz, inclusive os serviços de
inteligência, a sua “polícia política”, os seus esbirros partidárias, mediante
compra de consciências e de vontades, por meio da chantagem, da corrupção, das
insinuações diretas, da conquista por vantagens materiais ou intimidação pura e
simples?
Em que
país se observa uma tal concentração de poder, pela desmesura e apropriação de
recursos, monopolizados por quem controla as alavancas de extração de recursos e
de distribuição seletiva e arbitrária desses recursos? Qual o país no qual o
Estado central consegue controlar frações importantes da riqueza nacional, sem
que a massa dos cidadãos, e sequer seus representantes eleitos, possam controlar
devidamente, e na mais perfeita transparência, a coleta, o tratamento e a
distribuição (com alguns descontos pelo caminho, está claro) desses recursos?
Esse país só pode ser um país perfeitamente fascista, ainda que seus cidadãos
disso não se apercebam.
Em que
país o Estado central concentra mais e mais poderes e recursos, fazendo com que
indivíduos privados, em seu papel de produtores ou de consumidores, sejam
convertidos em dependentes obrigatórios desse Estado centralizador e
monopolista? Qual o país que coloca na lista de pagamentos do Estado, ao mesmo
tempo, o mais miserável dos excluídos e o mais ricos dos seus milionários? Só
pode ser um país fascista.
Qual o
país no qual o mesmo chefe, ungido à condição de nosso guia, líder genial dos
povos, intérprete da vontade nacional, se pretende iniciador de tudo de positivo
que existe – segundo lista que ele mesmo decretou como exclusiva de sua vontade
– e passa o tempo fazendo autoelogios e propaganda de si mesmo? Em qual país a
máquina pública é colocada a serviço do egocentrismo autista do chefe supremo, e
gasta rios de dinheiro fazendo propaganda enganosa sobre suas virtudes
inigualáveis e suas realizações inéditas? Tem de ser num país
fascista.
Em qual
país os órgãos de controle fiscal e econômico têm todo o poder e arbítrio para
invadir sua privacidade, decretar o que é ou não válido em suas contas privadas,
se permitir presumir intenções ou ações passíveis de punição administrativa,
pelo simples fato que esse órgão pode decretar, ao seu bel prazer, o que os
indivíduos podem ou não podem fazer com seu patrimônio, renda ou ganhos. Onde
mais esses mesmos órgãos, mesmo quando pensam “fazer o bem” aos empresários e
trabalhadores, “decretando” um favor qualquer no plano regulatório ou
tributário, impõem um tal número de normas e regulamentos tão complicados,
sujeito a uma burocracia kafkiana, que acaba tornando aquele favor um inferno
adicional, digno do mesmo escritor mas jamais por ele descrito em detalhes? Só
pode ser num país basicamente fascista, no direito e nas
práticas.
Em qual
país, um outro órgão supostamente constituído para a defesa da saúde pública,
impede farmácias de vender chiclete e impede cidadãos de alcançar eles mesmos
uma simples cartela de aspirina nas estantes das mesmas farmácias? Isso é
fascismo puro.
Como
chamar um país que pratica racismo oficial, que pretende dividir os cidadãos
entre uma minoria dita desprotegida, e todos os demais cidadãos, baseando-se
para isso apenas na aparência externa, e que recorre para dirimir casos
duvidosos a tribunais raciais? Qual o país no qual militantes da mesma causa
racial, divisionista, segregadora, ilegal, pretende tornar obrigatórias cotas
raciais em todas as esferas da vida pública, e quer ainda impor os mesmos
critérios sobre empresas e instituições privadas? Isso é fascismo no mais alto
grau de degeneração mental.
Qual o
país no qual o Estado se torna tão onipotente e avassalador que, desde os mais
simples cidadãos até os mais ricos empresários, todos se sentem obrigados,
compelidos, ou até mesmo o fazem inconscientemente, a recorrer ao Estado como o
nec plus ultra da vida social, como o Deus ex machina de todas as
soluções possíveis aos problemas e dilemas dessa sociedade, como se não houvesse
outras forças na sociedade do que a do Estado que tudo pode, tudo pensa, tudo
provê, tudo supervisiona, em tudo interfere, mesmo nas esferas mais recônditas
da vida privada, como a educação dos filhos, as opções sexuais das pessoas, o
que elas podem ver ou não na televisão, o que elas devem estudar nas
escolas, enfim, tudo o que perpassa a vida de cada um, da concepção até depois
de morto e enterrado? Já estamos aqui no fascismo
total...
Em que
tipo de país, um partido hegemônico pretende controlar a imprensa, determinar
como devem ser organizados os meios de comunicação, escolhe quem subsidiar nas
artes e na cultura, repassa dinheiro para os amigos do poder, escolhe quem vai
ser o vencedor de concorrências públicas (e que depois será obrigado a
submeter-se à extorsão financeira do mesmo partido), enfim, corrompe todos os
canais e instrumentos da administração pública e coloca militantes descerebrados
nas engrenagens do poder, para justamente ter o controle de todas as instâncias
da vida pública e privada dos cidadãos? Já estamos vivendo num sistema fascista,
com estas características.
Que
nome dar a um país que se deixou dominar por um sistema de tipo mafioso, e
totalitário, em que a obediência total e absoluta é devida ao semideus que
controla o sistema e tem a palavra final sobre o que pode e o que não pode nesse
país? Em que tipo de país mandarins oficiais, marajás estatais, corporações
organizadas de servidores ditos públicos, servem-se da máquina pública para fins
privados, chantageiam os cidadãos que necessitam dos serviços públicos, submetem
empresários que dependem desses serviços para produzir renda e riqueza e no
qual, as mesmas pessoas acham que possuem um direito divino aos recursos
públicos apenas porque estão no Estado? Só pode ser um país fascista, isso é
evidente.
Qual o
país no qual os ditos servidores não precisam prestar contas à sociedade, têm
direito à estabilidade imediata, se aposentam com inúmeros privilégios – que já
tinham antes na vida ativa – em relação a equivalentes funcionais do setor
privado, e ainda acham que prestam um grande favor à sociedade? Em qual país
acadêmicos e trabalhadores ditos intelectuais acham que a sociedade lhes deve
por direito pagar salários elevados sem que disso eles necessitem prestar
contas, sem qualquer critério de produtividade ou de resultados, como se fossem
marajás entronizados numa torre de marfim? Tem de ser um país de mentalidade e
comportamentos fascistas, está claro.
E,
finalmente, em qual país, senão num país fascista, todas essas características
ainda despertam admiração e orgulho, adesão inconteste e louvores exagerados,
como seu o chefe absoluto do Estado total fosse a vontade eterna consolidada na
figura em questão? Não pode ser senão num país
fascista.
O
fascismo, antes de exibir atributos materiais de tal ou qual movimento ou
partido político, e de se manifestar concretamente num regime determinado,
historicamente existente, constitui, primordialmente, um “estado mental”, uma
feitura especial da psicologia humana que corresponde àquilo que alguns
psicanalistas, psicólogos ou sociólogos chamariam de “personalidade
autoritária”. O fascismo, antes de ser de direita, de esquerda, ou de qualquer
outra corrente determinada do pensamento político dos últimos dois ou três
séculos, emerge de pulsões e comportamentos perfeitamente autoritários, e mesmo
totalitários, implicando numa vontade de dominação que parece resultar de algum
desvio de personalidade.
Não se
trata de um fenômeno ou processo puramente individual, mas deriva de tendências
psíquicas e mentais profundamente entranhadas no comportamento individual e
coletivo de milhares, talvez milhões de indivíduos que, ao longo dos séculos, e
provavelmente no decurso da história humana conhecida, se alçaram a posições de
mando e de dominação com base nessa vontade extrema de mandar e dominar outros
seres humanos. O fascismo, em sua essência, é isso: uma pulsão inexcedível para
o comando e a dominação absoluta, uma intolerância com respeito à liberdade
humana e uma incapacidade de conviver democraticamente, segundo os parâmetros de
uma sociedade normal, civilizada. O fascismo sempre é monopolizador, destruidor
das vontades alheias, monopolizador dos instrumentos de controle social,
arrebatador de todas as atenções e exigente de obediência total e
absoluta.
Pois,
ou eu muito me engano, ou tenho descoberto evidências empíricas, factuais,
materiais, de mentalidades, comportamentos, atitudes e práticas fascistas aqui e
ali, sempre que me volto para algum lugar, percorro sua imprensa, leio o que
escrevem seus “intelequituais”, ouço as perorações de alguns de seus chefes
políticos, e me espanto, de verdade, ao constatar como meus colegas e
concidadãos não percebem que estão em face de um país fascista. A maior parte da
massa não tem, obviamente, condições de fazer um julgamento elaborado a esse
respeito. Mas eu me pergunto como acadêmicos, pessoas bem informadas,
empresários que se sacrificam para viver dentro da lei (e pagam caro por isso),
como todas essas pessoas não se dão conta que estão vivendo sob um regime de
tipo fascista?
Este é
mistério para mim...
Paulo
Roberto de Almeida
Berlim,
2398: 31 Maio 201
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