A mãe de todas as ilusões

Guilherme Fiuza

A Assembléia Nacional Constituinte de 1988 foi uma catarse. Sob a batuta do lendário doutor Ulisses, o Brasil saiu consertando a si mesmo a canetadas. Depois da ditadura, era uma euforia como a de crianças reprimidas que vêem os pais saírem de viagem, e saem mudando as regras da casa. Foi gostoso, mas saiu, é claro, muita bobagem. Como está para sair agora com a tal da reforma política.

Com o trauma da centralização do poder nas mãos dos militares, a ordem na Constituição de 88 era descentralizar. A Carta acabou empurrando o país para a criação desenfreada de novos municípios, receita segura para o aprofundamento da democracia. O que se deu é sabido: foi a receita segura para o aprofundamento da burocracia, dos gastos públicos e da corrupção.

A sanha corretora está aí de novo. A tal reforma política é cantada aos quatro ventos como o antídoto contra tudo que é ruim. Ela vai salvar o país da desmoralização dos parlamentares, do desmando das autoridades, da crise de representatividade. Acomodem-se em suas poltronas para assistir a mais um desses enganos triunfantes.

A festa começa com a guerra ao caixa dois. Ele vai acabar. A redentora reforma política lava mais branco com o financiamento público das campanhas. Entendeu? O dinheiro do Marcos Valério será substituído pelo seu. Você bancará os brochinhos e os panfletos, para que nenhum político (ou candidato a) caia na tentação de recorrer aos serviços heterodoxos do carequinha operoso e seus congêneres.

Não dá um alívio, isso? Os políticos já têm a fortuna do fundo partidário (você de novo), do horário gratuito na TV, das doações legais (caixa um) e agora o caixa dois passa a ser bancado pelo contribuinte. Ou seja: Valério e companhia só vão precisar atuar para o caixa três em diante. Ou alguém acredita que a fome dos candidatos e a vontade de comer das Gautamas serão extintas com a nova mesada do Estado?

Tem também o fim do personalismo na política e o fortalecimento dos partidos. Não se preocupe, já está tudo programado no laboratório. Chega de homens providenciais, chega de rostinhos bonitos. Será tudo devidamente nivelado e neutralizado sob a aura justa dessa instituição fantástica chamada partido político.

Mais alívio no horizonte. É confortante saber que o comando do PMDB vai escolher uma boa fatia dos políticos que o Brasil vai eleger. Quem é mesmo o comando do PMDB? Ora, isso não é hora para perguntas desconcertantes. O importante é que você sempre escolhia o sujeito errado, porque olhava para o nome e não para o partido. Agora os caciques vão escolher por você. É realmente um banho de democracia.

O show não pára. Está cansado das promessas mirabolantes dos candidatos? Não se preocupe. A reforma política, esse bálsamo, vai resolver o problema. A partir dela, o candidato terá que se comprometer formalmente com a sua promessa, tipo registro em cartório, entende?
Como é bom chegar à maturidade. Doravante, só poderá ser debatido aquilo que vier a se realizar. Não é lindo? Ou o político tem a fórmula infalível – e, é claro, consulta sua bola de cristal sobre toda a equipe que o auxiliará, todas as forças com quem poderá compor, toda a situação administrativo-financeiro-fiscal que encontrará no cargo – ou então bico calado.
O regime talibã não teria uma idéia tão eficiente.

Mas tem mais, muito mais. A síndrome do Professor Pardal é fértil, e também prevê, entre outras sacadas geniais, que a reforma política terá a assinatura do povo. Essa fantástica teia de invenções salvadoras e moralizantes terá que ser, ainda por cima, aprovada num plebiscito.
Finalmente o Brasil acordou e entendeu que suas regras devem ser escritas na rua, pelo homem comum. O caminho está certo e, numa dessas idas a Brasília, Xuxa acaba assumindo a presidência do Congresso. Aí a crise de representatividade estará resolvida.

Viva a reforma política, a “mãe de todas as reformas”.

Mas fica aqui uma sugestão: depois da aprovação do povo, não custa nada mandá-la ao Mangabeira Unger para uma última olhada. Se é para ser criativo, vamos até o fim.

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