De Lula para Lula

Guilherme Fiuza

Todos se lembram que a palavra privatização foi decisiva na campanha presidencial. A palavra, não. O dogma. Em pleno 2006, o Brasil discutiu privatização com a paixão dos anos 80, quando Brizola ensinava ao seu rebanho que o que era do Estado era “nosso”, e o que era privado era “deles”.

Por uma dessas misturas mágicas de distração com ignorância, a privatização ressurgiu na disputa entre Lula e Alckmin não como idéia ou prática, mas como tabu. O discurso do PT chegou a associar a crise energética de 2001 à privatização do setor elétrico – quando foram exatamente as geradoras de energia que permaneceram estatais. Enfim, valeu tudo.
O mais interessante é ver agora o que o governo Lula está fazendo com o Estado, ou seja, com o que “é nosso”.

A criação pelo presidente de mais de 600 novos cargos de confiança, e o reajuste de até 140% por ele concedido a essa categoria de servidor – que abriga os afilhados políticos – é uma forma muito peculiar de fortalecer o Estado.

Lula ampliou o número de ministérios, criou pérolas como aquela Secretaria da Pesca, enfim, deu o devido banho de loja na burocracia para multiplicar seus cabides. Principalmente, os cabides providenciais, que são os tais cargos de confiança. A qualquer momento eles podem tirar do sereno um aliado derrotado ou um amigo carente. Como se sabe, não há moeda política mais valiosa que o combate ao desemprego dos puxa-sacos.

O Brasil festeja o superávit primário recorde de abril. Foram 23,4 bilhões de reais economizados na contabilidade pública. Esse é o outdoor de uma economia cujo risco se reduz a cada dia no mercado internacional. Viva as aparências.

Olhando de perto, o perfil desse superávit tem, numa ponta, uma carga de impostos também recorde – e insustentável no momento em que a economia global se contrair. Na outra ponta, tem-se o gasto público crescente e descontrolado, sem qualquer preocupação com espirais explosivas como a Previdência e o inchaço da máquina.

Previdência é investimento social, consola o governo. Inchaço da máquina é fortalecimento do Estado. Poderiam dizer também que rasgar dinheiro é entretenimento popular.

No Brasil de hoje, tudo é festa. O irmão do presidente da República faz lobby descaradamente em nome dele, e nem é indiciado. Os fundos de pensão fazem estatais como o Banco do Brasil atuar ostensivamente em favor de interesses políticos e partidários, e ninguém liga. Um diretor do BB entra na guerra suja da compra de dossiê contra adversários do PT e a Justiça se cala.
Não há dúvida, liberou geral.

A idéia da responsabilidade fiscal virou um panfleto, como qualquer outro desses que o PT imprime em série. A política de superávit, que Palocci teve que rebolar para contrariar o partido e manter, está montada em pés de barro. Da racionalização dos gastos públicos, da reforma do Estado, único caminho verdadeiro para a responsabilidade fiscal a longo prazo, não há nem sinal.
A equação é clara. O aumento de impostos serve a um governo perdulário, generoso com os apadrinhados, e mais especificamente ao partido do presidente, principal cliente dos cargos de confiança – cujos ocupantes são obrigados, inclusive, a descontar um percentual de seus ganhos em favor do partido.

Mas o que vale é o símbolo, a mística e a bonança econômica. Ninguém parece interessado em discutir agora essa herança maldita. Só quando ela for herdada. Mas aí será tarde demais.

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