A farra do grampo

Guilherme Fiuza


Cuidado com o que você fala ao telefone. Um dia sua voz pode aparecer nos telejornais, legendada, mostrando que você é culpado de algo que você ainda não sabia.


A febre da devassa tem o seu lado bom, depurador. Ninguém quer que as Gautamas evoluam leves e soltas pela penumbra. Mas o Brasil precisa se perguntar se quer pagar o preço de virar um gigantesco Big Brother, onde o estado de direito tem que pedir licença ao espetáculo.

A lei permite que a Justiça autorize uma escuta telefônica por no máximo 15 dias, prorrogáveis, desde que os indícios contra o investigado estejam se confirmando. Pois bem: nesses grampos que têm alimentado operações como Navalha e Furacão, há pessoas com seus telefones espionados por mais de um ano.

É legítimo, isso? Um pacto entre juízes, procuradores e policiais para abolir as salvaguardas legais que protegem a privacidade de seus investigados? Ah, mas o sujeito é criminoso, então vale a pena… Ok, pode ser criminoso, mas isso só será atestado pelo processo legal. Está valendo, então, pedir uma licencinha à lei para cercar mais rápido o suposto delinqüente?

É perigoso esse clima de arrastão moralizante. Para virar linchamento, não custa nada. A lei diz que o grampo só pode ser autorizado como último recurso de uma investigação que já está repleta de indícios contra o seu alvo, e precisa desse recurso extremo para auxiliar na obtenção das provas essenciais. Hoje, no Brasil, há juízes autorizando escuta telefônica até a partir de denúncia anônima. Uma maravilha, quando é com os outros.

É preciso fazer, o quanto antes, a distinção entre investigar um fato ilícito objetivo e bisbilhotar a vida de um cidadão. Na barulhenta operação Anaconda, da Polícia Federal, por exemplo, o relatório final chegava a se referir a uma suposta ligação homossexual entre uma juíza federal de São Paulo e sua assistente. Esse noticiário daqui a pouco vai passar dos telejornais diretamente para a novela das oito. O que vale é o show.

É preocupante um país que vê e aprova denúncias sendo jogadas no ventilador a partir de grampos em escritórios de advocacia. Está valendo, isso? Por que não grampear logo então as redações de jornais, os confessionários das igrejas e os consultórios de psicanálise? Essa onda virtuosa do “tudo às claras” a qualquer preço ainda vai revelar que todo brasileiro é um suspeito até prova em contrário.

Há um subproduto cômico dessa cultura Big Brother. As conversas telefônicas, e mesmo os emails, estão começando a se parecer com aquelas aulas de inglês para iniciantes. É tudo explicadinho. Não se diz mais coisas como “vê aquele negócio pra mim”, ou “já fiz o depósito”, ou “a encomenda de fulano chegou”. Uma fala dessas no horário nobre pode acabar com uma reputação para sempre. O melhor é dizer “já depositei o dinheiro do remédio de vovó” etc. Às vezes, por segurança, as pessoas estão até tipificando a doença de vovó.

É difícil para a imprensa ser seletiva com as gravações de grampos que recebe, afinal trata-se de material jornalístico, até mesmo em alguns casos de grampos ilegais. Mas há uma promiscuidade evidente nessa cadeia em que a polícia pede a devassa porque o juiz vai autorizar, o juiz autoriza porque a imprensa vai legitimar, e a imprensa legitima porque o público vai aplaudir – e, afinal de contas, a polícia pediu e o juiz autorizou.

No final, todos lavam as mãos. Mas, em muitos casos, elas estão, e permanecerão, irremediavelmente sujas.

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