Artigo de Joaquim Ferreira dos Santos, O Globo, 14/08/2023

 A Pasternak, a ozonioterapia e a espinhela caída



Por Joaquim Ferreira dos Santos
14/08/2023



Cuidado, leitor, com o vento encanado. Faz tempo, pelo menos nas minhas relações de parentesco e vizinhança, que graças a Deus ninguém é acometido de tamanha desgraça – mas, atenção, nunca se sabe.

Ela sempre ocorria nesses meses em que o frio do inverno, como no comercial das Casas Pernambucanas, bate à porta. Não deixe o vento encanado entrar. A ozonoterapia, a extravagância agora oficializada como prática de saúde pública, não cura.

A doença assustou a infância de milhões de brasileiros, gente que até hoje ainda tem nos ouvidos a voz preocupada do pai, da mãe, dos avós, todos gritando em uníssono o terrífico “menino, olha a friagem, fecha essa janela que você vai pegar um vento encanado pelas costas”.

Às vezes, talvez para dar padrão mais científico ou aumentar o medo, o progenitor chamava o monstro de “ar encanado”. Não importava. De um tipo ou de outro, ai de quem fosse alcançado por sua virulência maligna. Ficava com sequelas respiratórias graves. Morria-se.

A incidência traiçoeira daquele mal era mais onipresente no inverno de uma criança do que a aparição da loura do banheiro durante todo o ano letivo. O grito dos mais velhos era sempre seguido da informação de que uma prima, coitada, foi-se assim, os brônquios para sempre aniquilados, por ter ficado um minuto à frente da fresta daquela janela do inverno.

Mais literatos fossem, os pais lembrariam Brás Cubas. Ele contraiu desse jeito a pneumonia que o levaria à morte nas páginas, estas, sim, imortais, do romance de Machado de Assis. Uma pena. Brás Cubas estava próximo de patentear a criação do emplasto que eternizaria seu nome. Serviria de cura para o vento encanado e qualquer problema que afligisse a Humanidade.

“Que bobagem!”, o atual best-seller de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, ataca “pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério”. Detona até a acupuntura, o agulheiro que a toda hora me zera as dores por alguma lesão por esforço repetitivo. Tenho certeza que também não aprovaria o emplasto Brás Cubas e muito menos seu sucessor, o popular Sabiá, que tantas vezes me cobriu o peito no enfrentamento do ar encanado. O livro da Pasternak não fala nada sobre a cura da espinhela caída.

Na escuridão dos tempos o diagnóstico esteve pregado na fragilidade da infância nacional. Media-se com um barbante as pernas, os braços e também a barriga do petiz adoentado, aquele infeliz sempre cansado, com dificuldade de ganhar peso e dezenas de etcs problemáticos. Em caso de as centimetragens não serem iguais, a criança era dada como portadora da espinhela caída, sendo imediatamente encaminhada para o único recurso disponível na época, o sopé do morro onde, entre ervas variadas e cheirosas, atendia uma doce benzedeira. Às vezes, curava.

Eu sou pela ciência acima de tudo, pelas vacinas nos braços de todos, mas quem em algum momento não aqueceu uma aliança e passou como lenitivo sobre o terçol que não parava de inchar? É a medicina popular, um placebo fundamental na formação do país. Por mais que eu já ouça a Pasternark repetindo “que bobagem!”, agradeço as tantas vezes em que, às voltas com uma dor de cabeça, alguém me envolveu a testa com um lenço e botou dentro dele uma rodela de batata crua. Mal não fez.

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