Artigo de Demétrio Magnoli, O Globo, 21/08/2023

A cor é política


Tribo chique da pureza racial precisa do racismo para prosperar


21/08/2023 00h05 


A cor é política. Só assim entende-se a mudança captada pelo IBGE na declaração de cor/raça entre 2012 e 2022. No curto intervalo, os pretos saltaram de 7,4% para 10,6% dos brasileiros, enquanto a parcela de brancos caiu de 46,3% para 42,8%. As alterações, que parecem refletir o efeito das leis de preferências raciais, não tiveram impacto sobre os autodeclarados pardos: 45,6% em 2012; 45,3% em 2022. É uma prova, entre tantas outras, do fracasso do identitarismo racial.

“Mestiçagem, identidade e liberdade”, o novo livro do antropólogo Antonio Risério, publicado pela TopBooks, esclarece a finalidade das políticas de raça. Não se trata, como alegam seus arautos, de oferecer oportunidades a pessoas em desvantagem, via acesso às universidades ou a empregos públicos. Busca-se, de fato, dissolver a consciência da mestiçagem que sustenta nossa identidade nacional, substituindo-a pela imagem de um país bicolor, dividido entre “brancos” e “negros”.

“A fusão de raças tem se processado desde os primórdios da vida humana sobre a Terra” — nas palavras de Juan Comas, numa coleção da Unesco sobre raça e ciência. Risério cita a passagem para diferenciar os cruzamentos genéticos (miscigenação) da mestiçagem. A segunda é um fenômeno cultural — social e político.

Mestiçagem significa reconhecimento positivo da miscigenação. O “racismo científico” do século XIX denunciou a miscigenação como degeneração de raças. O movimento identitário-racial, que nasceu nos EUA, opera sob o mesmo paradigma. A noção de raça remete às ideias de pureza, separação e gueto; mestiçagem é a celebração da impureza, da mistura e da troca. O Brasil declarou-se 100% impuro, desde Gilberto Freyre até a Tropicália. Hoje, sua elite intelectual engata marcha a ré, coalescendo ao redor de um projeto de imitação dos EUA.

Mestiços são os 45% de pardos? Não: a escolha é entre sermos todos mestiços ou nenhum de nós ser. Dito de outro modo, a encruzilhada bifurca-se nos caminhos de aderir à raça ou rejeitá-la. É para aderir que, capturado pelo identitarismo racial, o Estado brasileiro extermina estatisticamente os pardos. Faz isso por meio de uma violência simbólica: a cassação da autodeclaração. Os que ousam declarar-se pardos são remetidos à categoria fictícia dos “negros”, pois a impureza deve ser abolida.

Mito, em antropologia, é uma narrativa coletiva, não uma falsificação. Nesse sentido, o mito da mestiçagem concorre com o mito da raça. O Brasil da universidade, das grandes empresas e dos veículos de comunicação escolheu o mito da raça, apartando-se da consciência popular. Não é casual que, nas últimas eleições, fracassaram as candidaturas do identitarismo racial, enquanto formava-se uma “bancada negra” majoritariamente ligada ao Centrão bolsonarista. As guerras culturais da esquerda elegem a direita.

A pureza exige “raízes”. O movimento identitário racial cultua a África. Mas, explica Risério, “a África da militância neonegra do Ocidente é uma África folclórica”, uma “construção ingênua e desinformada”. Eu iria além: é uma África ancestral imaginária invocada por ditadores africanos para desviar suas responsabilidades pelos sofrimentos atuais para as antigas potências coloniais. Alguém já viu a tal “militância neonegra” denunciar as discriminações étnicas na “Mama África”?

O álibi superficialmente poderoso do combate ao racismo acompanha, como uma sombra, a engenharia social dos identitários. Mas é inviável combater o racismo renunciando à noção de cidadania, cujo alicerce é o indivíduo.

A doutrina identitário-racial cancela o indivíduo. Nascer “branco” implica representar os donos de escravos do passado e pertencer à classe-raça opressora do presente. Nascer “negro” implica representar supostos ancestrais escravizados e figurar como vítima de um irrefreável “racismo estrutural” no presente. Nesse cenário, inexistem indivíduos e escolhas. O que existe são, unicamente, destinos determinados pela cor da pele.

A tribo chique da pureza racial nutre e esconde, atrás da linguagem extremada, um conformismo medíocre. Eles precisam do racismo para prosperar.

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