Editorial do Estadão, 24/05/2023

 Não compete ao STF legislar


Há mais de três anos o Supremo mantém suspensa a implementação do juiz de garantias, desmoralizando o Judiciário e desrespeitando os outros Poderes. É hora de corrigir esse abuso


Em 2019, o Congresso aprovou e o presidente da República sancionou a criação do juiz de garantias. Desde janeiro de 2020, contudo, o Supremo Tribunal Federal (STF) mantém suspensa sua implementação. Agora, a Corte finalmente pautou as ações que discutem a sua constitucionalidade.

Trata-se de uma norma processual adotada há décadas em vários países europeus, que foi debatida por mais de dez anos no Congresso e ganhou tração após o vazamento das conversas entre o então juiz Sérgio Moro e os procuradores da Operação Lava Jato que motivaram a Suprema Corte a declarar a parcialidade do magistrado e anular processos conduzidos por ele.

Pela Lei 13.964/19, em vez de um só juiz, os processos criminais passam a ter dois em etapas distintas. O juiz de garantias fica responsável pela fase de produção de provas, cabendo-lhe exercer o controle de constitucionalidade das investigações, autorizar busca e apreensão, deferir pedidos de quebra de sigilo e determinar medidas restritivas ao ir e vir do acusado. Finda a instrução e aceita a denúncia, o processo é transferido a outro juiz, responsável por julgar o mérito.

Como alegaram entidades de advogados, pelo sistema atual o juiz tem pouca motivação para revisar eventuais erros no inquérito em que ele próprio atuou, aumentando o risco da punição de inocentes e da impunidade de culpados. Por sua vez, magistrados e promotores se manifestaram contra, alegando razões estruturais e fiscais: a necessidade de realizar concursos, contratar servidores e formar juízes numa realidade em que 40% das comarcas contam só com um magistrado.

São questões pertinentes. Mas o único tema sujeito a controle de constitucionalidade é a criação de despesas sem previsão orçamentária. Ainda assim, esta, como as outras alegações, são passíveis de pronta solução. Tanto que o então presidente da Corte, o ministro Dias Toffoli, havia adiado a implementação da norma por seis meses, entendendo que o Judiciário precisava de tempo hábil para se organizar, mas que não havia necessidade imediata de criação de cargos. O adiamento era já medida excepcional, mas não afrontava a decisão do Congresso. Na semana seguinte, contudo, Luiz Fux aproveitou-se de um plantão e concedeu liminar em ação movida por uma associação de promotores, suspendendo a eficácia da lei por prazo indeterminado.

O Congresso criou o juiz de garantias justamente em resposta a abusos do Judiciário, com o objetivo de assegurar a isenção da magistratura, preservar o equilíbrio processual e garantir segurança jurídica. Ironicamente, Fux agrediu todos esses princípios ao obliterar a decisão dos representantes eleitos no Legislativo e no Executivo.

Sem disfarçar suas motivações corporativistas, Fux alegou que a “medida foi feita para depreciar o juiz da causa” e que – mesmo após anos de debates no Congresso – faltavam “melhores subsídios” quanto ao “impacto financeiro” do juízo de garantias. A preocupação fiscal, diga-se, é seletiva. Fux nunca hesitou em apelar a pedidos de vista ou liminares para engavetar ações que contrariavam interesses da magistratura, como quando protelou por quatro anos o fim do auxílio-moradia a todos os juízes e promotores do País, onerando os cofres públicos em mais de R$ 1 bilhão.

A liminar desmoraliza o próprio Poder Judiciário, que deveria funcionar como um colegiado. Mas, sobretudo, afronta os demais Poderes, cujas competências foram sequestradas pelo voluntarismo e as idiossincrasias de um único juiz.

Intransigente ao escrutinar o cisco no olho dos outros, a Corte se mostra muito confortável com a trave no seu. O STF anda alarmado com “ataques às instituições” e “ameaças ao Estado Democrático de Direito”, a ponto de lançar mão de expedientes no mínimo duvidosos contra os supostos agressores – como inquéritos secretos e intermináveis ou remoções de conteúdos nas redes digitais determinadas de ofício e mal fundamentadas –, mas por mais de três anos tem tolerado uma flagrante agressão aos demais Poderes saída de seus próprios bancos. Já passou da hora de pôr um fim a ela.

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