Artigo de Carlos Andreazza, O Globo, 11/05/2023

 

O mal-estar do Direito

O episódio é: Alexandre de Moraes, ministro do Supremo, mandando um aplicativo de mensagens apagar comunicado – remetido a seus milhões de usuários – em que atacava o Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como das Fake News.

A questão – a questão inicial: estará, o que criticar a determinação de Moraes, fazendo o jogo dos que são contra o PL?

Contraponho: não estará – o próprio ministro – fazendo o jogo dos que são contra o PL?

Aqueles contra a regulação das redes nos termos conhecidos do projeto falam que a lei poria em risco a liberdade de expressão. Será absurdo – criminoso – considerar o que Moraes fez um ato de censura? Certamente pode ser – já está sendo – apregoado como tal.

Não quero, entretanto, fazer análise sobre exploração política da decisão. Seria caminho fácil. Nem dar conselho a ministro de corte constitucional, o que seria ridículo. Quero discutir, a partir do que escreveu Moraes e considerando as balizas que propõe, se a mensagem do Telegram pode ser comparada aos ataques à República, aqueles que culminaram no 8 de janeiro, e caracterizada como “flagrante e ilícita desinformação atentatória ao Congresso Nacional, ao Poder Judiciário, ao Estado de Direito e à Democracia Brasileira”.

É possível avaliar que a mensagem do aplicativo estivesse errada e, pois, tivesse compreensão distorcida sobre natureza e objetivos do PL. E é mesmo necessário questionar se, vendendo-se historicamente como plataforma neutra, não haveria um problema em o Telegram se posicionar ativamente como fez. Seja como for, estaremos falando de opinião.

Não será legítimo, conforme a Constituição, que a empresa, parte interessada, expresse que o projeto, uma vez aprovado, poderia se desdobrar em censura?

A decisão de Alexandre de Moraes não consistiu apenas em mandar que o Telegram apagasse a comunicação remetida, mas que a substituísse por outra – com, francamente, a opinião do ministro sobre a mensagem do aplicativo. Atentarei contra a democracia, nos termos iluministas de Moraes, ao dizer que ele excede?

Não é questão pessoal. Entendo que haja gratidão por Moraes ter defendido a democracia brasileira, sobretudo no período eleitoral – e daí um certo melindre em criticá-lo. Bolsonaro foi um trauma e deixou medos. Deixou também – porque pode voltar e porque o bolsonarismo veio para ficar – uma licença para que sejam tratados como antidemocráticos os que puserem reparo em atividades do STF e do governo Lula.

No curso de sua gestão excêntrica sobre alguns inquéritos, o ministro tem acertos e erros. Mesmo que vivamos num período em que vai esfacelada a capacidade de observar nuances, não será aceitável – fácil, sim – olhar as decisões de Moraes como pacote fechado. E não é simples analisar os lances quando pensamos em seus efeitos; quando pensamos sobre se terão produzido efeitos; quando pensamos sobre se terão produzido os efeitos positivos desejados. Há controle sobre os efeitos?

Os atos golpistas de 8 de janeiro ocorreram mesmo com as mobilizações excepcionais do ministro. “Teria sido pior sem elas” – já escuto. Não tenho como cuidar desse argumento. Sei que se pretendeu, em Brasília, mesmo com Moraes, com tudo, explodir caminhão-tanque cheio de combustível dentro do aeroporto. Botou-se o plano na rua.

Repito: não é questão pessoal. Aliás, é impessoal. Ou melhor: em defesa da impessoalidade. Mas é claro que parecerá pessoal. Isso decorre do fato de se tratar de mais uma medida monocrática. Vamos as empilhando, como se num cada um por si chancelado simplesmente pelo STF.

O Supremo parece ter se convertido em escada para os exercícios e experimentos individuais de Alexandre de Moraes pela democracia. Isso não é normal. E o Brasil precisa de normalidade. Ou admitiremos, afinal, que esse gênio não voltará mais para a lâmpada? (Não quero entrar no desenvolvimento, em busca de apoio no espírito de corpo, de que esse poder – na eventual mão de um Alexandre bolsonarista – tenda a se voltar contra o jornalismo.)

Outro legado do “risco Bolsonaro” é uma autorização a arbitrariedades se sob a virtuosa luta contra o autoritarismo. Essa autorização tem validade eterna.

O inquérito das fake news também; sob o qual, por óbvio, encaixou-se a ordem contra o Telegram. Um inquérito em que tudo cabe, viciado de largada, sigiloso, que jamais teve objeto definido – tocado monocraticamente por um ministro delegado de um tribunal constitucional que opera ao mesmo tempo como vítima, promotor e juiz.

Inquérito permanentemente aberto, tragando de tudo, e que nunca será fechado – condição a que sirva como plataforma sempre disponível às atividades liminares de Moraes.

O país precisa de normalidade. Precisa também de regulação às redes. O PL 2630/2020 é bem-vindo. Tem virtudes. (Alexandre de Moraes e o governo nos mostrando, aliás, a importância da agência reguladora autônoma – elemento retirado da última versão do texto do projeto, sem o qual o conjunto, mais que capenga, ficou temerário.) Tem também defeitos – quase todos derivados da pressa. É preciso atentar para a disfunção estrutural produzida pelo aterramento de ritos próprio aos regimes de urgências de Arthur Lira.

É preciso, acima de tudo, mesmo com Lira e seus elmares, defender que a discussão – que haja discussão – ocorra no Congresso. O Legislativo tem seu tempo, ainda que seus dirigentes trabalhem contra a natureza – a da representação e do contraditório – do ofício parlamentar. O Legislativo, melhor com ele, tem seu ritmo. E o ímpeto legiferante – agravado pelo monocratismo – do Judiciário, entre outros efeitos, produz e difunde, reforça, na sociedade percepção nociva sobre o Parlamento. (O ímpeto legiferante do Judiciário – especialmente o monocrático – também faz aflorar os juízes do Executivo.)

A regulação das redes é necessária e o caminho passa por poder responsabilizá-las, numa espécie de autorregulação mediada. O advento do que se nomeia por “dever de cuidado” é um acerto; sendo óbvio que o marco legal da internet, ao isentar as redes de arcar com o peso dos conteúdos que abriga e impulsiona, tem inconstitucionalidades. Que o Supremo, em plenário, as declare. Ponto.

A regulação cabe ao Parlamento. O Brasil precisa de normalidade. Não de heróis.

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