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Artigo de Joel Pinheiro da Fonseca, Folha, 01/05/2023

 

Por que sou contra o PL das Fake News

Querer que redes arbitrem sobre o conteúdo em temas cruciais é temerário

Uma rede social que permita postagens afirmando que Lula, ajudado pelo STF, deu um golpe nas instituições brasileiras estará faltando com seu dever de cercear conteúdos que ataquem a democracia? E a rede social que permitir posts dizendo que Temer deu um golpe, "com o Supremo, com tudo"? Será lícito defender a cloroquina num post? E a Teoria Monetária Moderna?

São algumas perguntas que o PL das Fake News suscita. Originalmente, ele previa a criação de um conselho independente para resolvê-las. Agora o conselho caiu, mas as discussões ainda caberão a alguém. Ministério da Justiça? Anatel? Seja quem for, está bem claro que é muito poder para uma entidade só.

Esse é apenas um dos aspectos do PL —há também o debate econômico e medidas de transparência, algumas boas inclusive—, mas é importante o bastante para que ele me pareça ter mais potencial para o mal do que para o bem. Isso sem falar nos pontos simplesmente absurdos: políticos com mandato imunes a qualquer tipo de remoção de conteúdo pelas plataformas. Ou seja, algumas das principais fontes de fake news de nosso país estão expressamente protegidas pelo PL das Fake News.

Para as empresas, que querem evitar multas milionárias, o mais fácil será simplesmente vetar tudo o que possa parecer fake news sobre os temas sensíveis listados na lei.

E o debate público ficará cerceado. Via de regra, não é desejável socialmente proibir o erro ou mesmo a mentira. Primeiro, porque determinar o que é a verdade em cada caso concreto dá um poder enorme à entidade que receber essa atribuição. E, se ela tiver vínculos com um dos lados da luta política do país, pior ainda.

E, em segundo lugar, porque erros e mesmo mentiras também servem ao debate público, ao obrigar quem conhece a verdade a refutá-los e estabelecer —perante a opinião pública— uma versão que mais se aproxime da verdade e dos fatos conhecidos. Esse processo de debate público, guiado, a cada passo e em cada participante, por paixões irracionais, ambições pessoais e espírito de grupo, resulta num público mais informado no longo prazo.

Entendemos melhor o processo de aprovação de vacinas, o funcionamento das urnas eletrônicas e a definição das taxas de juros graças aos debates que movimentaram a sociedade nesses anos. Nos "bons e velhos" tempos antes de redes sociais e fake news, ninguém fazia a menor ideia.

Aprender a navegar nessas novas águas, mais democráticas (ou seja, em que um número maior de pessoas participa) é muito mais importante do que tentar cobrar das empresas que limpem o debate público brasileiro.

De pouco adianta que alguns especialistas detenham um conhecimento socialmente relevante se são incapazes de torná-lo inteligível e persuasivo —inclusive desfazendo mitos e mentiras— para os participantes do debate público que não são especialistas. Como, aliás, os políticos e demais líderes com poder de decisão na sociedade também não são nem nunca serão especialistas.

Nestes dias acompanhamos a atuação do Ibama no resgate da capivara Filó sendo questionada na opinião pública e na Justiça. Fatos desencontrados, com oportunistas de ambos os lados. Mas é nesse processo que eles se esclarecem.

Hoje as autoridades são chamadas a justificar suas decisões perante a opinião pública, e a pressão política que essa necessidade cria, embora não tenha a caneta em mãos, muitas vezes influencia quem tem.

Um PL poderia ajudar a tornar as redes mais transparentes e menos manipuláveis. Mas querer que elas arbitrem sobre o conteúdo em temas cruciais, sob a ameaça de multas e até fechamento, é temerário.


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