Segundo Editorial do Estadão, 11/04/2023

 

Lula não está acima do Congresso

Opinião do Estadão


É dever dos parlamentares derrubar decretos de Lula que desfiguram o Marco do Saneamento, pois contrariam lei aprovada pelo Legislativo e ajudam a manter desigualdades

A falta de saneamento básico é uma das mais constrangedoras desigualdades sociais, que afetam o presente e o futuro de grande parte da população. Em 2020, depois de muito estudo e debate, o Congresso aprovou o Marco do Saneamento (Lei 14.026/2020), que, para enfrentar essa lamentável situação, estabelecia duas grandes frentes: desencastelar empresas estatais de saneamento ineficientes e estabelecer um tratamento jurídico uniforme, para prover segurança jurídica e atrair investimentos privados.

O PT sempre foi contra o Marco do Saneamento. Escolheu ficar do lado das empresas públicas ineficientes e dos que delas se beneficiam, em vez de defender a população mais vulnerável. Durante a tramitação do texto no Congresso, a legenda lutou para que tudo ficasse rigorosamente como está. Atualmente, são cerca de 100 milhões de brasileiros sem coleta de esgotos e 35 milhões sem acesso à água tratada. Felizmente, os petistas perderam a batalha, e a Lei 14.026/2020 foi aprovada.

Agora, o presidente Lula da Silva pretende reverter por decreto os grandes avanços do Marco do Saneamento. Na semana passada, o Executivo federal editou dois decretos (i) estendendo a permanência de empresas estatais de saneamento que comprovadamente não têm condições de prestar o serviço de forma adequada e (ii) desobrigando a realização de processo licitatório para companhias estaduais que atuam em microrregiões. Além de ferirem os propósitos da Lei 14.026/2020, as medidas afetam a estabilidade e a previsibilidade da regulação. Como se sabe, a insegurança jurídica afasta investimentos privados.

Nessa história, há um detalhe importante. Os decretos de Lula contra o Marco do Saneamento se aproveitaram de uma brecha criada pelo presidente Jair Bolsonaro. Originalmente, o Congresso havia proibido a renovação de contratos sem licitação depois de 31 de março de 2022. No entanto, Bolsonaro vetou esse trecho, excluindo da lei a previsão de um prazo. Agora, o governo do PT utiliza essa ausência de data para estender, por decreto, contratos sem licitação, justamente o que a Lei 14.026/2020 vinha impedir.

Tudo isso é revoltante, mas existe um caminho constitucional para reverter o retrocesso causado pela gestão petista. Entre as competências previstas no art. 49 da Constituição, o Congresso tem o dever de “sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa” (inciso V), “fiscalizar e controlar, diretamente, ou por qualquer de suas Casas, os atos do Poder Executivo, incluídos os da administração indireta” (inciso X) e “zelar pela preservação de sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros Poderes” (inciso XI). Os decretos de Lula encaixam-se nas três hipóteses, a exigir, assim, imediata atuação do Congresso.

Para tanto, basta que o Congresso edite um decreto legislativo sustando os efeitos dos decretos do Executivo federal. Isso não fere o princípio da separação dos Poderes, tampouco significa atropelo das competências do Palácio do Planalto. É apenas uma medida, com sólido suporte na Constituição, de proteção das prerrogativas e da vontade do Legislativo. O presidente da República não pode impedir, por meio de decreto, que uma lei produza seus efeitos.

Além de ter evidente fundamento jurídico e de assegurar condições para a melhoria da infraestrutura de saneamento, um decreto do Legislativo sustando os dois atos do Palácio do Planalto pode ser especialmente pedagógico, neste momento em que o governo Lula ensaia e tenta tantos retrocessos. É uma oportunidade para relembrar alguns limites fundamentais da República. Existe um Congresso a ser respeitado, o que inclui respeito às leis aprovadas. Além disso, governar o País não é impor, por meio de decreto, ideias que, no âmbito adequado de debate, foram derrotadas. Essa manobra foi vista, por exemplo, nos decretos das armas de Jair Bolsonaro. E o Supremo Tribunal Federal já disse que esse jeito de exercer o poder é rigorosamente inconstitucional.

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