Editorial do Estadão, 22/04/2023

 

A LRF não é optativa

Opinião do Estadão


A proposta de regime fiscal desfigura a LRF. Ora, o governo não pode se dar o direito de escolher se vai ou não cumprir a lei, em especial um marco jurídico tão importante para o País


A proposta de arcabouço fiscal apresentada pelo governo Lula ao Congresso, em si mesma insuficiente para assegurar equilíbrio nas contas públicas, é também nociva ao País, ao desfigurar um marco jurídico que, nas últimas duas décadas, tem sido fundamental para o exercício republicano do poder na administração pública: a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF, a Lei Complementar 101/2000).

O Projeto de Lei Complementar (PLC) 93/23, apresentado pelo governo, é contraditório. Segundo o Ministério da Fazenda, o objetivo do novo arcabouço fiscal é “deixar claro para investidores, sociedade em geral e agentes internacionais como o governo vai equilibrar e manter sob controle as contas públicas, e ainda realizar investimentos nos próximos anos”. No entanto, o art. 7.º do PLC 93/2023 traz diversas alterações na LRF que mitigam a responsabilidade jurídica de quem descumprir as exigências fiscais.

Não faz nenhum sentido propor novas regras fiscais e, ao mesmo tempo, dizer que essas regras não devem valer sempre ou ainda que seu descumprimento não será penalizado. É o próprio formulador das novas regras dizendo que elas não precisam ser rigorosamente cumpridas. Se era um projeto de lei para transmitir confiança sobre a capacidade do governo de controlar as contas públicas, o conteúdo do texto difunde a mensagem oposta.

O Congresso tem o dever de rejeitar as alterações propostas na LRF. O que o governo Lula fez com o PLC 93/2023 é muito mais grave do que descumprir a LRF. Ele está tentando assegurar impunidade a todos os futuros descumprimentos da legislação fiscal. Trata-se de uma ousadia que não foi implementada nos dois primeiros governos de Lula nem nos piores momentos de Dilma Rousseff na Presidência da República. É um acinte que, no momento em que o País tanto necessita de um arcabouço fiscal minimamente sério, o Executivo federal venha a alterar precisamente a lei que põe alguns limites no descontrole e na irresponsabilidade. É tempo de construir, mas o PT parece mais interessado em destruir.

A ironia é que, com o art. 7.º do PLC 93/2023 mudando as normas da LRF, o governo de Lula da Silva reconhece a existência de fundamento jurídico para o impeachment de Dilma Rousseff. O processo não se baseou apenas numa questão política. Não foi preciso “inventar” um crime de responsabilidade. A lei estabelecia de forma tão cristalina as consequências do descumprimento das regras fiscais que o PT, já no primeiro semestre de governo, está interessado em remover do ordenamento jurídico essas penalidades.

A armadilha construída pelo PT é escandalosa. Seria muita ingenuidade do Congresso cair nela. O governo de Lula da Silva diz que está apresentando ao Legislativo um novo arcabouço fiscal, mas na verdade está criando todas as condições para que o novo arcabouço fiscal seja olimpicamente descumprido.

Certamente, há muito o que estudar, debater e aprimorar no conteúdo das novas regras fiscais propostas pelo Executivo. Com a tramitação do PLC 93/2023, o Congresso tem um trabalho fundamental a fazer, que expressa a missão perene de todo Poder Legislativo: conferir responsabilidade ao Executivo. Precisamente por isso, em relação às alterações propostas na LRF, não há que perder tempo com elas. O interesse público impõe rejeitá-las todas.

Não é questão de interditar o debate, mas de impedir retrocessos. O País tem de andar para a frente. A LRF, que vale para a União, Estados e municípios, teve papel fundamental em tudo o que se construiu ao longo dos últimos 20 anos. Mudar a LRF agora seria algo similar a mudar o Código Florestal no início de 2019, para que o bolsonarismo tivesse liberdade de desmatar impunemente. O Congresso respeita a si mesmo preservando, em primeiro lugar, seu bom trabalho feito.

O PLC 93/2023 não é apenas um projeto tímido, entremeado de exceções que fazem duvidar de sua aptidão para gerar superávit primário em 2024, como o ministro da Fazenda prometeu. Há partes no projeto que destroem, produzindo retrocesso inédito até para os 13 anos anteriores de PT no governo federal.

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