Editorial do Estadão, 24/09/2022

A democracia não depende de Lula


É legítimo advogar pelo voto útil, mas desqualificar intenção de voto que não seja em Lula é pouco democrático. Democracia é feita com liberdade de escolha, e não com oportunismos


Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
24 de setembro de 2022 | 03h00


É cada vez mais evidente o clima de constrangimento a quem não adere ao lulismo no primeiro turno. Em vários setores da sociedade, há uma desqualificação de toda intenção de voto que não seja no candidato do PT, tratando-a não apenas como apoio à reeleição de Jair Bolsonaro, mas como uma explícita atitude antidemocrática. Perante essa pressão rigorosamente inconstitucional, é preciso lembrar alguns pontos básicos sobre liberdade política e regime democrático.

É plenamente legítimo advogar pelo chamado “voto útil” desde o primeiro turno. Faz parte da liberdade política a ponderação, a partir das informações trazidas pelas pesquisas de intenção de voto, entre os riscos e as oportunidades de cada escolha política. No entanto, não é legítimo – atenta contra a liberdade política – desqualificar o voto em candidatos mal posicionados nas pesquisas de opinião em razão de eventuais efeitos sobre a realização ou não de um segundo turno.

Diante de algumas manifestações mais recentes sobre um pretenso imperativo cívico de votar em Lula da Silva no primeiro turno, parece que o suprassumo da democracia seria a abdicação de todas as candidaturas à Presidência da República em favor do candidato petista. Ora, o regime democrático brasileiro é pluripartidário. Não há como qualificar de antidemocrático que um partido – ou um grupo deles – queira apresentar ao eleitorado uma proposta política específica, por mais minoritária que possa ser.

Além de ser pluripartidário, o regime democrático brasileiro prevê, nas eleições para presidente da República, governador e prefeito, a possibilidade de dois turnos, precisamente para assegurar a maior amplitude possível de liberdade política: que cada eleitor tenha a oportunidade, ao menos num primeiro momento, de escolher a candidatura que mais corresponde a seus anseios e suas preferências. De novo, não há nenhum problema que o eleitor, se assim o desejar, antecipe suas escolhas finais para o primeiro turno. O que não faz sentido é impor essa antecipação como uma obrigação moral.

Certamente, faz parte da liberdade política a avaliação sobre o presidente Jair Bolsonaro e seus devaneios autoritários. E muitos, no exercício dessa liberdade, podem concluir que, diante das ameaças e bravatas bolsonaristas, é mais seguro para o País que a eleição para presidente da República seja concluída num só turno. Mas há também muitos outros argumentos legítimos para defender a realização de dois turnos. Por exemplo, se a grande questão no momento é a defesa da democracia, pode-se entender que a melhor resposta é sempre mais democracia, mais liberdade política, mais envolvimento da sociedade, e não menos.

Aos que alegam a imensa excepcionalidade dos tempos atuais para defender o voto em Lula no primeiro turno, pois não seria prudente dar a Bolsonaro nenhuma chance de vitória, cabe fazer duas perguntas. Primeira: o PT defenderia o voto em algum candidato de outro partido que estivesse mais bem posicionado nas pesquisas? A julgar pelo histórico do partido, que jamais apoiou nada que não fosse petista, a resposta é não. Segunda: por que o PT, tão preocupado com as ameaças bolsonaristas à democracia, não trabalhou pelo impeachment de Bolsonaro? Ocasiões, motivos e clamor popular não faltaram. No entanto, Lula e o PT acharam que era preferível vencer Bolsonaro nas urnas. Ou seja, julgaram que manter Bolsonaro na Presidência poderia ser útil para alimentar a polarização que os petistas sabem explorar como ninguém.

Mais do que defesa da democracia, essa campanha de voto útil no primeiro turno é utilíssima aos interesses de Lula. É um modo de pedir voto – às vezes, de impor – sem dizer qual será o seu efetivo programa de governo, sem enfrentar temas difíceis como corrupção e aparelhamento partidário, sem se comprometer a não repetir os erros das gestões petistas passadas. Essa tática é ainda mais perversa quando tenta demonizar outros candidatos que estão fazendo precisamente o que é mais próprio de uma campanha eleitoral em um regime democrático: apresentar suas propostas para tentar convencer o eleitorado.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Artigo de André Lajst, O Globo, 21/01/2024

Artigo de Natália Pasternak, O Globo, 21/08/2023

Artigo de Carlos Andreazza, O Globo, 02/06/2023