Último Tango?


Valor Econômico 01 de outubro de 2012
Último tango na Argentina?

Por Sin-ming Shaw

Às vezes, temos a impressão de que a Argentina e as crises econômicas andam juntas desde a criação do país, como gêmeos siameses. De fato, a Argentina foi o único país desenvolvido que, entre a Segunda Guerra Mundial e os dias de hoje, conseguiu deixar esse grupo por questões de má administração.

Apesar de todos os fracassos, no entanto, as elites dominantes do país sempre mantiveram a altivez, considerando o país como igual às nações mais fortes do mundo e, portanto, nunca temerosas de enfrentá-las.

Em Buenos Aires, por exemplo, é procurar briga sugerir que o futebol argentino não é o melhor do mundo, embora tenha vencido a Copa do Mundo apenas duas vezes, atrás do Brasil (cinco), Itália (quatro), e Alemanha (três) - e igual ao pequeno vizinho, Uruguai. Embora muitos especialistas, jogadores e torcedores coloquem o brasileiro Pelé como o melhor jogador de todos os tempos, é prudente não contestar a insistência local de que tanto Maradona ou Lionel Messi, dois jogadores locais, são melhores.

Recentemente, em um táxi em - quem diria - Hong Kong, um jovem dançarino de tango de Buenos Aires ficou visivelmente agitado com seu anfitrião quando o futebol brasileiro foi colocado como estando à frente do argentino.

Tal bravura, ou atrevimento, permite à atual presidente do país, Cristina Fernández de Kirchner, insistir em dizer que a inflação na Argentina - atualmente saindo de controle, bem acima dos 20% - continua abaixo dos 10%. Em 2007, Fernández substituiu estatísticos profissionais do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos1 por indicados políticos quando a agência começou a divulgar índices que mostravam uma aceleração alarmante. Desde então, os números oficiais e a realidade seguiram caminhos separados2.

Além disso, economistas e acadêmicos do setor privado vêm sendo alertados que divulgar números diferentes poderia resultar em acusações criminais, por disseminação de rumores falsos. De fato, um acadêmico foi multado em US$ 125 mil3 por divulgar números da inflação substancialmente maiores do que os dados oficiais indicavam.

Naturalmente, quando se controla a agência oficial de estatísticas, você pode divulgar o índice de inflação que quiser; isso, no entanto, não altera o preço do pão. Qualquer um que compre comida em supermercados ou use táxis sabe que a verdadeira inflação anual nos últimos anos foi de 20% a 30%. O mercado chegou a seu próprio veredicto, refletido na diferença entra a taxa de câmbio oficial de 4,6 pesos argentinos por dólar e a do mercado paralelo, que recentemente chegou a 6,8 pesos, com alguns economistas já sussurrando que a marca de 8 pesos pode ser alcançada em um futuro não tão distante.

A Argentina não apenas se negou a pagar os US$ 100 bilhões em dívidas externas, com sua inadimplência há dez anos; também rejeitou as críticas sobre a expropriação em abril da petrolífera espanhola Repsol. A Argentina ofereceu-se a compensar a empresa pelo valor de mercado "justo", a ser determinado em data futura - presumivelmente quando o preço das ações, que caiu quase 60% de início e ainda continua 40% abaixo, saia do chão.

Mesmo enquanto as evidências de uma crise econômica continuam a se acumular - o sinal mais recente foi a limitação de compra nos supermercados a uma garrafa de óleo de cozinha por cliente, o governo não dá sinais de preocupação. As autoridades desafiaram o Fundo Monetário Internacional (FMI), ficaram inadimplentes em suas dívidas e orgulhosamente proclamam que a Argentina transcendeu a economia tradicional. O governo ainda "negocia" com o FMI sobre qual a melhor forma de reunir, mensurar e divulgar os dados inflacionários, como se isso não fosse realizado rotineiramente por estatísticos capacitados no resto do mundo.

A atitude orgulhosa da Argentina pode ter levado o país a tornar-se uma economia de segunda categoria, mas essa mesma atitude serviu-lhe bem em sua grande contribuição à cultura mundial: o tango, reconhecido pela Unesco4, como parte da "herança cultural intangível".

Ano após ano, na Competição Mundial de Tango, dançarinos argentinos dominam as principais colocações do Tango de Cenário, mais glamouroso e difícil do que a outra categoria, Tango de Salão. Neste ano, não foi diferente, as três principais duplas eram da Argentina.

Dançar tango bem não é apenas uma questão de habilidade técnica, que pode ser aprendida por qualquer pessoa. Os japoneses são mestres inigualáveis em tais habilidades e vêm competindo desde o início das competições internacionais de tango, em 2003. Em 2009, uma dupla japonesa, Hiroshi e Kyoko Yamao, fez história ao vencer o campeonato de Tango de Salão, em que a ligação amorosa entre os dançarinos é mais importante que a atitude arrogante. No Tango de Cenário, em que a atitude é fundamental, apenas uma japonesa, conseguiu chegar ao topo - e dançando com um parceiro argentino.

Juan Fabbri, dono do Tango Porteño e Esquina Carlos Gardel, dois dos clubes de tango mais importantes e caros em Buenos Aires, acredita que o que falta aos estrangeiros (inclusive a mim, aluno de tango há anos) é o fator "El Cachafaz". El Cachafaz é o apelido do lendário dançarino do início do século XX - José "Benito" Bianquet. Esse nome é uma gíria, traduzida como "lunfardo", e evoca "atrevimento, perigo, virilidade, travessura e audácia".

Mario Morales, grande coreógrafo de tango, que treinou vários campeões, explicou-me de forma ligeiramente diferente. "Para dançar o tango bem, você precisa 'corazón' [coração, em espanhol] e paixão. Os estrangeiros são mais circunspectos. Nós argentinos talvez entremos primeiro com nosso coração e pensemos depois."

Essa percepção possivelmente seja a melhor explicação de por que a Argentina se sobressai no tango - e por que não consegue permanecer no primeiro mundo, do qual já fez parte. (Tradução de Sabino Ahumada).

2 www.mit.edu/~afc/papers/Cavallo-Argentina.pdf

4 www.unesco.org/culture/ich/en/RL/00258

Sin-ming Shaw é um investidor privado internacional e ex-pesquisador da Oxford University. Copyright: Project Syndicate, 2012.
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