O argumento narcoliberal

O filme Tropa de Elite reacendeu o ânimo dos defensores da liberação das drogas. Como pode uma película, mesmo antes da estréia nacional, estimular o falado “debate qualificado das idéias” – de que tanto gostam os petistas – em sentido tão desqualificado? A resposta é simples: a ficção do cinema é mero pretexto para a disseminação do argumento preparado de que o Brasil precisa do “liberou geral” das drogas para atingir a civilização. Querem por que querem impingir à sociedade que o ato de drogar-se é direito individual indisponível e que o Estado teria menos ônus caso deixasse o narconegócio ao alvedrio do mercado. O pior é que a falácia, apoiada “cientificamente” no que se pode chamar de “sociologia do barato”, cada vez mais angaria adesão oficial.


Da maneira como o pessoal da descriminação argumenta, as drogas poderiam salvar o Brasil ao corrigir os desvios históricos de ineficácia do Estado. No cenário proposto, a liberação das drogas seria um ganho institucional extraordinário por intermédio da transferência do problema da alçada policial para a saúde pública. De engenhoso modo, as drogas liberadas acabariam com o tráfico e faria com que as organizações deixassem de existir por uma questão falimentar. Em efeito cascata estaria resolvida a superlotação dos presídios, já que o comércio ilegal de entorpecentes é responsável por aproximadamente 80% do sistema prisional. Já a corrupção policial, coitada, praticamente voltaria ao tempo do troco do jogo do bicho. Ou seja, a polícia teria algo mais relevante a fazer do que prender o traficante, agora respeitável empreendedor do ramo de entorpecentes.


O interessante do engodo é o desenho que a apologia das drogas faz do mercado livre. Em primeiro lugar vem a questão fiscal. O Estado, que antes despendia volumes imensos de investimentos no aparato policial, judiciário e prisional, passaria a economizar tais recursos e ainda haveria ganho extra. As drogas ofereceriam uma nova e portentosa fonte de arrecadação tributária, cujo gravame seria parecido com o do tabaco e do álcool, drogas lícitas que o Ministério da Saúde busca justamente conter o consumo. No que refere ao processo produtivo, da lavoura à indústria, passando pelo sistema de distribuição, a atividade econômica seguiria um rígido marco regulatório e contaria com controle estatal eficaz, como certamente ocorre com a aviação civil e a vigilância sanitária.


Imagine o Conselho Administrativo de Defesa Econômica a reprimir as práticas anticoncorrenciais do setor, com atuação peremptória contra o dumping, o monopólio e a prática de preços predatórios? E o apelo publicitário, que espetáculo! Haveria a maconha da boa? A cocaína que desce redondo? O crack que satisfaz? Ora, o Brasil tem problemas demais causados pelas drogas e do ponto de vista legal foi lamentavelmente longe ao suprimir a pena de prisão para o usuário e para quem desenvolve a produção de autoconsumo de substância entorpecente. A ONU se atém a muitas estatísticas sem lastro, mas o Relatório Mundial de Drogas é um documento altamente confiável e a edição de 2007 confirmou o crescimento do uso de cocaína e maconha no Brasil, além de ter apontado que o País já é o maior mercado de opiáceos da América do Sul.


De volta à realidade, a liberação das drogas, a qualquer título, tem potencial devastador em um país como o Brasil onde o Estado é ineficiente para regular e fiscalizar, e a rede de proteção social apresenta baixíssimo rendimento. O cenário provável é, de um lado, o desmonte da atividade policial, que não é de boa qualidade; e de outro o congestionamento ainda maior do serviço de saúde, jamais preparado para atender pacientes desta natureza, já que não consegue dominar sequer o mosquito da dengue. No sistema educacional os comprometimentos seriam devastadores com o aumento natural do consumo que a liberação iria proporcionar. Ou seja, o Estado que é ineficaz para praticar o bem – saúde, segurança e educação – se veria ainda mais incapacitado ao perder o controle total do mal liberado.


A descriminação das drogas é uma estupidez que se alimenta da falta correta de informação e aos poucos vai sendo consentida por incorporar algo de politicamente correto e até de moderno, quando a tendência mundial é no sentido contrário. Os Estados Unidos, por exemplo, que sempre apostaram na repressão, obtiveram resultados expressivos de redução de consumo de heroína e cocaína. Lá, o número de condenados no sistema prisional por envolvimento com drogas representa praticamente o total da população carcerária brasileira. E ninguém fica a choramingar pela sorte do traficante.


A Holanda está decidida a reverter a política de liberação de consumo, pois viu que a experiência é desastrosa. Os holandeses, hábeis negociantes, perceberam que estão perdendo dinheiro com os drogados e traficantes que atuam nas ruas de Amsterdã. Sobre o “mercado local”, uma única consideração: hoje o Brasil não é produtor de cocaína e nem tem importância global no cultivo da maconha. Se liberar as drogas, em pouco tempo passará à liderança da produção. Aí vamos ter de nos mirar nos Andes a propósito do nosso projeto de civilização.


Demóstenes Torres é procurador de Justiça e senador (DEM-GO)

Artigo publicado no Blog de Ricardo Noblat, no jornal Globo on Line

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