Editorial do Estadão, 18/04/2024

 Freios e contrapesos em frangalhos


Aprovação da PEC das drogas no Senado se presta a retaliar o STF, em mais um capítulo da espiral de revanche entre os Poderes. Sem autocontenção, as instituições não funcionam


Em fevereiro, na abertura dos trabalhos do Poder Judiciário, os presidentes dos Três Poderes organizaram uma coreografia para celebrar a “harmonia entre os Poderes”. O presidente da República falou em “afeto” pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). O presidente do Congresso disse que nenhuma instituição tem o “monopólio da defesa da democracia do Brasil”. O presidente do Supremo arrematou: “Felizmente, não preciso gastar muito tempo nem energia falando de democracia, porque as instituições funcionam na mais plena normalidade, com convivência harmoniosa e pacífica de todas”.

A frase envelheceu rápido e mal. O que se vê é o contrário. Cada Poder gastando muito tempo e energia com sua agenda própria, ora confrontando outro Poder para demonstrar força, ora se aliando para revidar a um terceiro Poder, e isso em meio a lutas intestinas em cada um dos Poderes e uma polarização política calcificada em pleno ano eleitoral.

Um STF de configuração mais progressista, insatisfeito com a “inércia” das maiorias conservadoras no Congresso, avança sobre pautas legislativas, como o marco temporal das terras indígenas, aborto, regulação das redes digitais ou a descriminalização da posse de maconha.

A esses erros o Congresso responde com outros, embutindo matérias na Constituição que deveriam estar restritas à legislação ordinária, apenas para se contrapor ao Supremo. O Senado acaba de aprovar a criminalização da posse de drogas – ociosa, porque já está na lei. Na Câmara, tramitam projetos que autorizariam o Congresso a sustar decisões do STF.

Se o Judiciário pisa fora de seu quadrado, desde os tempos de Dilma Rousseff o Congresso acumula poderes e discricionariedades, especialmente sobre o Orçamento, sem as correspondentes responsabilidades. O presidente da Câmara usa sua caneta para avançar ou reter pautas, quase sempre sem se referir ao mérito, mas para chantagear o Executivo a ceder cargos e emendas. O presidencialismo de coalizão se tornou um presidencialismo de colisão. Políticas públicas são desfiguradas, desidratadas, dispersas em meio a esse embate em que ambos os Poderes querem verbas, mas ninguém aceita cortes, e o equilíbrio fiscal se degrada a cada dia.

Por sua vez, um Executivo acuado por esse Congresso empoderado, onde sua base de esquerda é minoritária, apela ao Judiciário para reverter por decisões judiciais pautas que perde no voto. Nesta semana, o decano do STF, Gilmar Mendes, recebeu em sua casa o presidente Lula, o advogado-geral da União e o ministro da Justiça para um convescote com os ministros Alexandre de Moraes, Flávio Dino e Cristiano Zanin. Na pauta, um pedido de apoio a Lula e sua base ante o que os ministros consideram ameaças do Congresso e dos “golpistas” – como se fosse a coisa mais normal do mundo o presidente da República atuar como lobista do STF e ministros articularem uma espécie de “judicialismo de coalizão” para refrear ambições da oposição. Sem nenhum sinal de moderação nos “inquéritos do fim do mundo”, a tendência é de novas represálias do Congresso e mais radicalização da oposição bolsonarista.

Tudo isso é péssimo para o País. A cada pauta, já não se sabe se se está discutindo a coisa em si ou o ânimo vingativo de cada Poder, o interesse público ou os interesses privados. Os freios e contrapesos estão estiolados. Na verdade, não há contrapeso, mas pressão permanente; não há freios, só aceleradores. A lei da física é irrevogável, e nestas circunstâncias a tendência é de mais derrapagens e colisões.

Divergências são desejáveis na democracia. Inaceitável é a tentativa de interferência de um Poder em outro ou alianças espúrias entre Poderes, travestidas de “pacto”. Ora, esse pacto já foi feito, por meio da Constituição de 1988, e lá está claro: os Três Poderes devem ser “independentes e harmônicos entre si”. A harmonia só é possível quando cada um atua dentro de seus limites constitucionais, sem interferir na independência do outro. Mas o que se tem visto é o contrário: um ativismo frenético sob a justificativa virtuosa de “salvar a democracia”. Se esse é o objetivo, então só há um caminho: o da autocontenção.

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