Editorial do Estadão, 10/12/2023

 A esquerda não pode viver de STF


O Supremo é cada vez mais visto pela esquerda como o lugar da realização de seus projetos mais caros, sem ter que se dar ao trabalho de convencer a população e o Congresso a apoiá-los


No mesmo fôlego em que atacou o Congresso, acusando-o de atuar como “raposa” que toma conta do “nosso galinheiro”, o presidente Lula da Silva acabou confessando que a pauta dita “progressista” não tem votos e, por isso, depende do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em Dubai, falando à sua claque de militantes, Lula disse que “ninguém de bom senso” imaginava que fosse possível “ganhar no Congresso” o debate sobre o marco temporal para a demarcação das terras indígenas. “É só olhar a geopolítica do Congresso”, disse Lula, referindo-se, obviamente, à forte presença de parlamentares conservadores. Por isso, admitiu o presidente, “a única chance que a gente tinha era a que foi votada na Suprema Corte”.

Eis então que o presidente da República reconheceu, sem qualquer constrangimento, que o Supremo se tornou instância eminentemente política, à qual os derrotados no Congresso recorrem para disputar um “terceiro turno” e ganhar na toga o que perderam no voto. E tudo fica ainda pior para um governo com capacidade cada vez menor de cooptar parlamentares, pois estes estão bem menos dependentes do governo para angariar fundos, em razão das emendas obrigatórias individuais e de bancada, além do “jeitinho” dado por Executivo e Legislativo para contornar a declaração de inconstitucionalidade do orçamento secreto.

Essa dependência que a esquerda passou a ter do Judiciário ajuda a explicar por que razão o presidente Lula escolheu o ministro da Justiça, Flávio Dino, para o lugar de Rosa Weber no STF. Para um governo sem base sólida no Congresso, seria bastante útil uma composição do STF simpática, ao menos em tese, a ideias e projetos do Executivo nos campos da economia e das políticas públicas – matérias disciplinadas, com algum excesso, na Constituição. Exemplo recente da sintonia do STF com as teses do Executivo foi a autorização dada a este para regularizar o estoque de precatórios represado pela chamada “PEC do Calote” do governo Bolsonaro.

Além disso, considerando a orientação ideológica prevalecente no Legislativo, também é conveniente para o governo uma composição do STF simpática a pautas associadas a direitos individuais (descriminalização do aborto e do porte de drogas para consumo próprio), a ações igualitárias (cotas) e ao meio ambiente (marco temporal).

Ainda mais porque, neste novo mandato, o presidente da República encontra sua base social mais diversificada e aguerrida. Vieram dela as muitas ações em favor da indicação de uma mulher negra para a vaga de Rosa Weber no STF, especialmente após Lula ter indicado seu advogado, Cristiano Zanin, para a vaga de Ricardo Lewandowski. Diante da frustração com a indicação de Dino, restou aos descontentes o fato de que o ministro da Justiça é um quadro afinado com pautas da esquerda e um reconhecido combatente do bolsonarismo.

Aí reside outra “vantagem” da indicação do atual ministro da Justiça: apoiar o STF em sua resposta ao bolsonarismo mais destrutivo. Nos últimos tempos, a crítica ao protagonismo do STF se intensificou, seja ante a concentração de processos sob sua jurisdição, seja por suas ações heterodoxas no combate a malfeitos do governo anterior. Nessa equação, ao mesmo tempo jurídica e política, a presença de um ministro articulado e articulador como Dino é também muito bem-vinda ao governo.

Em resumo: Lula tem no Supremo um elo imprescindível à governabilidade, ao possível sucesso das pautas abraçadas por sua base social e à responsabilização do bolsonarismo anti-institucional e antirrepublicano.

Mas isso não revela apenas a importância do STF na atual conjuntura de governo ou sua reiterada, malgrado indevida, condição de ator político. A indicação de um ministro político para o Supremo mostra como a esquerda vê na Corte o lugar da realização de seus projetos para o País, sem a necessidade de se dedicar ao trabalho árduo de convencer a população a apoiá-los – tarefa inglória, porque em geral esses projetos são estranhos, quando não francamente hostis, ao interesse comum da maioria dos eleitores. A propósito da capacidade de persuasão que parece faltar à esquerda, vale recordar Lincoln: “O sentimento público é tudo. Com ele, nada fracassa; sem ele, nada triunfa. Quem molda o sentimento público vai mais fundo do que quem promulga estatutos ou profere decisões judiciais”.

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