Editorial do Estadão, 31/07/2023

 Competência institucional não é um capricho


Quando um Poder atropela a Constituição e invade a competência de outro a pretexto de resolver um problema social, não se resolve o problema e ainda se criam novos


Muitas vezes, o respeito às competências institucionais de cada Poder é visto como um apego a formalidades burocráticas, numa atitude de despreocupação com a resolução efetiva dos problemas. É comum, portanto, ouvir que, a depender das circunstâncias, os agentes públicos não deveriam ser censurados por atropelos aos limites das atribuições do cargo. Uma “boa causa” mereceria exceções.

Caso recente foi a determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), para que União, Estados e municípios adotassem uma série de medidas para a população em situação de rua. Mais do que averiguar se ele tinha competência jurisdicional para proferir tal decisão, o fundamental – como muitos postularam – seria o reconhecimento da gravíssima situação humana e social, a demandar uma atuação excepcional do poder público. Lembrar a necessidade de o juiz ater-se às suas atribuições institucionais seria, no caso, quase uma agressão à humanidade das pessoas em situação de rua, uma indiferença com esse drama humanitário. Similar raciocínio é aplicado a muitas outras áreas, como o combate à corrupção e o fomento da educação.

O alerta faz-se necessário. No Estado Democrático de Direito, a distribuição de competências entre os Poderes e órgãos públicos não é apenas por uma divisão de poder, o que é, por si só, uma razão importante. No regime democrático, não há poderes ilimitados. Existe, no entanto, outro motivo, igualmente significativo. A atribuição de competências específicas para cada órgão estatal obedece a uma razão de eficácia.

Só respeitando as atribuições institucionais é que o poder público pode ser realmente eficaz na resolução dos problemas sociais e econômicos. É muito bonita uma decisão judicial impondo uma série de obrigações a todos os entes federativos em relação ao cuidado com a população em situação de rua. Parece, à primeira vista, que ela proporcionou um avanço na compreensão desse grave problema social, bem como na disposição de enfrentá-lo. No entanto, a medida é utópica, sem apoio na realidade, a começar pela falta de condições do STF para acompanhar o cumprimento dessa decisão pelos 27 Estados da Federação e pelos 5.568 municípios brasileiros.

A ter em conta o teor da decisão de Alexandre de Moraes, o STF passa a ser o revisor de todas as políticas públicas da União, dos Estados e dos municípios em relação à população em situação de rua. Tal centralização na Corte, comemorada por alguns como o reconhecimento da relevância do tema, é absolutamente disfuncional, tanto para o funcionamento do Supremo – cuja estrutura é incapaz de fazer a gestão desses casos – como para a proteção das pessoas em situação de rua. Mais do que levar todos os casos para Brasília, a efetividade dos direitos é obtida, entre outros meios, pela capilaridade do sistema de Justiça, que deve estar próximo das pessoas.

O Estado Democrático de Direito é incompatível com soluções “para inglês ver”. Por sua própria razão de ser, ele tem um compromisso com a efetividade dos direitos. Por isso, medidas salvacionistas, que pretendem resolver questões complexas com uma canetada, são inadequadas. Além de descumprirem as competências constitucionais – quase sempre há violação ao princípio federativo e intromissão na seara do Congresso, o que gera déficit de legitimidade democrática –, elas são enganosas. Prometem o impossível. Basta pensar na falácia, muito difundida nos tempos de Lava Jato, de que a 13.ª Vara Federal de Curitiba – uma vez alçada à condição de “juízo universal de combate à corrupção”, como alertou certa vez Alexandre de Moraes – seria capaz de limpar e renovar toda a política nacional.

Advertir a respeito da incompetência jurisdicional de um juiz na fixação de políticas públicas para a população em situação de rua em todo o País não é ignorar esse grave problema social. É o contrário. Trata-se de não se iludir com soluções mágicas – e ineficazes. O tempo é curto. E os direitos das pessoas, valiosos. O tema tem de ser enfrentado responsavelmente.

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