Editorial do Estadão, 21/07/2023

 O escandaloso jeitinho de tolerar o ilegal


Plano do governo de taxar apostas online é mais um sintoma da pouca importância que se dá à lei. O jogo continua sendo ilegal. Eventual legalização deve ser debatida antes no Congresso


Os jogos de azar são ilegais no Brasil. A Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei 3.688/1941), que proibiu a jogatina no País, segue vigente. No entanto, o governo federal anunciou que vai editar uma medida provisória (MP) para taxar as apostas online. Os porcentuais de cobrança já estariam definidos: 16% sobre a receita obtida com os jogos e 30% de Imposto de Renda sobre o prêmio, com isenção até R$ 2.112. Também já foi pensado o destino do dinheiro a ser arrecadado com as apostas: seguridade social (10%), Fundo Nacional de Segurança Pública (2,55%), clubes (1,63%), Ministério do Esporte (1%) e educação fundamental (0,82%).

A rigor, o plano do governo federal é uma aberração. O poder público não pode ser indiferente à lei. Não faz sentido cobrar imposto de atividades ilegais, como o tráfico de drogas ou a venda de órgãos humanos. Atividades ilegais devem ser reprimidas, e não incluídas entre as fontes de receita. No entanto, em vez de ser tratado como um escândalo, o caso da taxação das apostas está sendo visto com normalidade por muita gente. E isso diz muito sobre como as coisas funcionam no País.

Houve inúmeras tentativas para legalizar os jogos de azar no País, mas todas elas fracassaram. No ano passado, a Câmara chegou a aprovar, sem maiores discussões, um projeto de lei legalizando a jogatina, mas o Senado, de forma prudente, não votou a proposta, preferindo esperar. Até aqui, portanto, se verifica a vontade inequívoca do Legislativo brasileiro de proibir o jogo. Em 2015, reiterando essa disposição, o Congresso alterou o Decreto-Lei 3.688/1941 para incluir na pena de multa “quem é encontrado a participar do jogo, ainda que pela internet ou por qualquer outro meio de comunicação, como ponteiro ou apostador”. Em vez de liberar, ele ampliou e reforçou a proibição.

No entanto, sem maiores alardes – sem o necessário debate, próprio do regime democrático – , o lobby pela legalização dos jogos conseguiu incluir, em 2018, no texto da MP 846/2018, sobre o Fundo Nacional de Segurança Pública, cinco artigos sobre “apostas de quota fixa”, “sob a forma de serviço público exclusivo da União”, a serem exploradas mediante autorização ou concessão do Ministério da Fazenda. Foi a velha e conhecida manobra de aproveitar a tramitação célere de MP para aprovar um tema politicamente complicado.

Com isso, desde 2018, passou a existir na legislação brasileira uma autorização genérica para “apostas de quota fixa”. No entanto, o governo nunca regulamentou o tema. E, pelo próprio teor da redação final da MP 846/2018 (depois convertida na Lei 13.756/18), era preciso dispor de uma regulamentação, já que a atividade só pode ser explorada mediante autorização ou concessão do Ministério da Fazenda. Ou seja, enquanto não houver a devida regulamentação, nenhuma empresa pode promover apostas no País. No entanto, a entrada em vigor da Lei 13.756/2018 foi vista como uma liberação irrestrita da jogatina online.

Trata-se de fenômeno realmente peculiar. Nenhuma empresa que oferece apostas online no Brasil cumpre os requisitos da Lei 13.756/2018. No entanto, todas elas entenderam que a nova lei havia lhes concedido o direito de realizar apostas no País. Com isso, sem mudar uma vírgula da Lei de Contravenções Penais, a jogatina foi “legalizada” no País. Se alguém tem dúvida, é só assistir a uns minutos de televisão no Brasil.

No entanto, a escandalosa interpretação da lei não foi exclusividade das casas de apostas online. O Ministério Público parece não ter visto maiores problemas. E o próprio governo, ao reparar no sucesso das apostas esportivas, em vez de buscar a aplicação da lei, viu na jogatina uma nova fonte de receita.

Jogo de azar é tema complexo, com muitos efeitos sociais e também sobre o esporte, como mostram os esquemas de manipulação de partidas. Não cabe solução sorrateira. E a voz final não pode ser das casas de apostas nem do governo de plantão. Eventual legalização precisa ser debatida com calma no Congresso. Qualquer atalho viola o regime democrático.

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