Segundo Editorial do Estadão, 21/06/2023

 

Conversa fiada com o presidente

Opinião do Estadão

Como se estivesse jogando conversa fora com os amigos, Lula usa o aparato estatal de TV para acusar Bolsonaro de tramar golpe, alimentando a polarização que mobiliza seus devotos

Do que se viu durante as duas primeiras edições da Conversa com o presidente, programa semanal ao vivo transmitido pelas páginas oficiais da Presidência e pelos canais da TV Brasil na internet, as lives do presidente Lula da Silva só não são toscas como as protagonizadas por Jair Bolsonaro. Fora a notável mudança no apuro técnico das transmissões, permanece a mixórdia entre desinformação, propaganda de atos do governo, autopromoção e uso do aparato estatal – no caso, o Palácio da Alvorada e os equipamentos e servidores da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) – para servir aos interesses políticos privados do governante de plantão.

Na segunda-feira passada, por exemplo, Lula usou a live para acusar Bolsonaro de “coordenar um golpe” para impedir sua posse. Ou seja, o petista, como se não fosse presidente e como se estivesse com amigos numa mesa de bar, sem responsabilidade nenhuma, se apropriou de uma transmissão viabilizada por recursos públicos para difundir suas teorias sobre Bolsonaro. “Já está provado que eles (os bolsonaristas) tentaram dar um golpe”, afirmou Lula. “E coordenado pelo ex-presidente, que agora tenta negar”, concluiu o presidente. Em seguida, talvez se lembrando de que não estava ali na condição de cidadão comum, tratou de dizer que tudo será investigado “com muita tranquilidade” e que “todo mundo terá a chance de se defender”. Que bom.

Ora, como presidente, não cabe a Lula fazer esse tipo de acusação. Afinal, a eventual responsabilidade de Bolsonaro pelo infame 8 de Janeiro é objeto de investigação pela Polícia Federal (PF) que ainda está em andamento. A natureza de Lula, porém, sempre fala mais alto do que atributos mínimos esperados de um presidente da República, como temperança, decoro e institucionalidade.

As acusações de Lula já seriam temerárias mesmo se tivessem sido feitas durante entrevista ou conversa informal. Tanto pior quando veiculadas por canais oficiais de comunicação, que não se prestam a esse tipo de discurso político e, vale lembrar, têm seu uso muito bem regulamentado por lei. Ademais, como qualquer ato da administração pública, a comunicação do presidente e de representantes do governo deve ser orientada pelo interesse público. A Constituição é de uma clareza solar ao enumerar, em seu artigo 37, os princípios norteadores do comportamento de agentes públicos.

Onde estaria a utilidade pública, a justificar o emprego do aparato estatal como plataforma de comunicação, nas acusações formuladas por Lula contra seu antecessor? Pode-se dizer que é do mais alto interesse dos cidadãos conhecer o grau de envolvimento de Bolsonaro, na condição de presidente e comandante supremo das Forças Armadas, na trama para subverter o Estado Democrático de Direito no País após a sua derrota na eleição do ano passado. Mas não cabe a Lula dizer se Bolsonaro é culpado pela intentona ou se deve ou não ser punido pela tentativa de sublevação. Isso é tarefa do Judiciário, após a conclusão das investigações da PF e do oferecimento de uma denúncia formulada pelo Ministério Público.

Esse modelo de lives, a pretexto de estabelecer uma “comunicação direta” – como se isso existisse – entre governante e população, tão ao feitio de populistas, é ruim por si só, pois implica o rebaixamento do debate público democrático, haja vista que o presidente fica protegido de perguntas incômodas que lhe seriam feitas por jornalistas profissionais e independentes. É tanto pior porque, no caso das lives de Lula e de Bolsonaro, se presta a manter vivo o extremismo político que só interessa aos dois e às suas hostes de apoiadores mais radicais. Não serve de nada ao Brasil.

A pacificação nacional, tão almejada por tantos brasileiros, só haverá de vir pelo respeito às leis, ao devido processo legal e às instituições republicanas. Como presidente da República, Lula deveria ser o primeiro a compreender isso – e dar o exemplo. Mas é ocioso esperar esse movimento do petista, cujo compromisso com a pacificação nacional durou o tempo exato da campanha eleitoral.

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