Artigo de Carlos Andreazza, O Globo, 02/06/2023

 

E depois de Zanin?

O caso da indicação de Cristiano Zanin ao Supremo deveria servir de arena urgente ao debate sobre a depauperação dos critérios institucionais para escolhas dessa natureza. Perdeu-se já para muito além do decoro, esse saudoso.

(E para esse estado de esculhambação das balizas éticas contribui também o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, mui à vontade para comentar a indicação – e aprovar o nome posto – antes da necessária sabatina; já feito de trouxa o rito formal, caso alguém tivesse dúvida de que o Congresso mais uma vez não cumprirá a sua missão de escrutinar a valer o nomeado. Vexame.)

Ninguém questiona que seja prerrogativa do presidente da República apontar ministro do STF. É prerrogativa do presidente. Impessoal. Princípio republicano. Não de Lula. Não do Lula. Lula escolhe com quem irá almoçar. Ministro do Supremo, escolhe o presidente da República.

Não é jogo de palavras.

Por exemplo: a residência oficial da presidência da Câmara não é de Arthur Lira. Não é nem do presidente da Câmara. É da presidência da Câmara. Lira passa. Lula passa. E amanhã, projete-se, volta um Bolsonaro. É prerrogativa do presidente escolher o diretor-geral da Polícia Federal. Bolsonaro indicou Alexandre Ramagem. Lembra? Seu segurança, parça, amigo dos filhos, “gente nossa lá”. Foi um escândalo.

Também é prerrogativa do presidente conceder indultos. Bolsonaro ofertou o benefício da graça para Daniel Silveira – tudo na base da camaradagem, do compadrio. Do desvio de finalidade. Em busca de proteção a si e aos seus. Foi um escândalo.

Amanhã, alguém duvida?, volta Bolsonaro, ou um Bolsonaro volta, um bolsonarista vem. E aí? Aterrados os marcos republicanos para escolhas institucionais, custará menos de um pulinho a que se salte de André Mendonça para Frederick Wassef no Supremo.

Convém citar Wassef porque o nome do tipo apareceu nas últimas horas, advogado pessoal de Jair Bolsonaro. Como Zanin, de Lula. Não se pode, contudo, compará-los. Não sem ser muito injusto com Zanin. Wassef escondeu Queiroz em casa. É outro patamar, como diria o filósofo Bruno Henrique. Mas é, objetivamente, advogado de Bolsonaro. Como Zanin, de Lula. E os precedentes, esses relaxamentos de critérios, vão abrindo as portas.

Hoje vai Zanin, escolhido não apenas por haver defendido Lula. Né? Escolhido “não só pela minha defesa”. Né? Amanhã será um Wassef, escolhido não apenas por haver defendido Bolsonaro e escondido Queiroz. Evolui-se. É o desgaste progressivo do valor da vergonha – de ter vergonha – que está exposto. A galera perdeu a vergonha. Não tem mais freio.

Não saberei dizer quando começou. Lula indicou Dias Toffoli, seu AGU. Movimento insuperável em matéria de afronta ao notório saber. Sob o critério de “terrivelmente evangélico”, Bolsonaro indicou André Mendonça, seu AGU, que era tido e se comportava como advogado do chefe, e que, como ministro da Justiça, abrigara a produção de dossiês sobre opositores do presidente. Evolui-se.

As fronteiras que separam público e privado se vão diluindo. Diluem-se os padrões do que seja, na prática, República. Zanin é escolha segura para Lula. Homem de confiança. Antes se era mais disfarçado, discreto, na cata por defensores togados. Lula mesmo se deve considerar traído por alguns – que tinha por cadeiras de segurança – que nomeou ao Supremo. É a isso que responde, sem nem envernizar. Radicaliza, depois de tudo o que passou. Evolui-se.

Depois de tudo o que passou, também no STF, ora, quer proteção – e escancara: meu advogado, o que me defendeu contra a sanha da Lava Jato. Nem Lula deve saber o que Zanin pensa sobre temas relevantes ao desafio de ser guardião da Constituição Federal. Ninguém sabe. Dane-se. Lula sabe – e sabemos nós – somente o que o homem pensa sobre Moro e seus dallagnols. Mas indica esse desconhecido mesmo assim, para um futuro de quase 30 anos na Corte Constitucional.

O que isso nos comunica sobre preocupações do presidente da República com a agenda futura do Brasil – e foi eleito para presidir o Brasil – em termos de matéria constitucional? O que, sobretudo, virá depois? Não só o que virá de Lula depois; que, em campanha, estelionato eleitoral, declarou que nunca nomearia um amigo ao Supremo. O que a escolha de Lula franqueia a seus sucessores?

Precedentes não serão desperdiçados. Não são. Bolsonaro escolheu Augusto Aras procurador-geral da República. Lula já arma a embocadura para escolher um Aras. Por que não? Precedentes. Evolui-se.

O raciocínio serve também – insisto, já que desde 2019 escrevo isto – para as picadas abertas por Alexandre de Moraes. Porque outros alexandres estão convidados, autorizados, a excessos em nome da democracia. Não é? E cada um com o seu entendimento sobre democracia. Carmen Lúcia autorizou, a do “cala boca já morreu”. Só enquanto se combate o mal. Né? Arreganhos pela virtude. Tudo provisório. Quando acabará o combate? Certos gênios não voltam mais para a lâmpada. Precedentes. Evolui-se.

E o próximo Lira? O que fará Elmar Nascimento a partir da extinção do rito parlamentar e da caça diária à atividade legislativa? Congresso Codevasf? O que é regime de urgência, senão trator, na mão de autoritário? Precedentes.

Terá responsabilidade também, na oferta de precedentes que assaltam os critérios republicanos, uma Corte constitucional percebida como agente político. Ou melhor, para ser exato: com vários de seus ministros partícipes da cena política, quando não político-partidária, de Brasília. Um governante com menor convicção republicana quererá, claro, ter um dos seus – com poder e influência – tomando parte nesses convescotes decisivos.

É um ciclo doente. Que o Supremo alimenta, postas as jurisprudências ao ar como um biruta de vento. O que virá depois?


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