Segundo Editorial do Estadão, 02/04/2022

 Autoritários detestam agências independentes


Articula-se agora uma PEC para esvaziar as agências reguladoras, cuja autonomia voltou a ser atacada porBolsonaro, a exemplo do que fazia Lula



Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
02 de abril de 2022 | 03h00


Em mais uma demonstração de incompreensão reiterada sobre o papel das instituições de Estado, o presidente Jair Bolsonaro atacou publicamente as agências reguladoras. Para o capitão da reserva, elas “podem muito mais que os Ministérios” e existem apenas para “criar dificuldades”. “Não precisa dizer que nasceu no governo de Fernando Henrique Cardoso”, ironizou Bolsonaro.

Não é a primeira vez que ele critica as agências, mas a declaração, neste momento, evidencia uma orquestração articulada com apoio e conivência do Legislativo sob disfarce de uma reforma administrativa. O Estadão revelou que uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que esvazia as funções desses órgãos deve chegar ao Congresso em abril, retirando de sua alçada a regulamentação de leis e decretos, ou seja, a execução das políticas públicas. Essas atividades, bem como o julgamento administrativo do cumprimento de regras dos setores, seriam delegadas a conselhos a serem criados dentro dos próprios Ministérios.

As agências reguladoras são um marco institucional da democracia. Elas foram criadas no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em um momento de modernização do Estado, quando estatais começaram a ser privatizadas. Não foi por capricho que elas foram vendidas: essas empresas consumiam bilhões em recursos públicos sem entregar serviços à altura. Basta lembrar que uma linha telefônica era um bem tão valioso quanto um imóvel, e a fila de espera para atendimento dos pedidos dos consumidores era medida em anos.

A privatização das empresas de telefonia e de energia foi fundamental para a universalização do acesso a serviços que hoje estão à disposição de toda a população. Esse avanço está diretamente ligado à atuação das agências. A garantia legal de autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira, a ausência de tutela e subordinação hierárquica e a estabilidade dos mandatos de seus dirigentes são pilares que deram ao setor privado a segurança para ingressar em setores até então marcados por incompetência, intervencionismo e privilégios.

Ainda que vinculadas a Ministérios, as agências não obedecem a ministros. Tampouco são órgãos de defesa do consumidor em busca da menor tarifa possível, ainda que inviável. Seus diretores têm mandato fixo e, depois de submetidos à sabatina do Senado, não podem ser demitidos. Seu corpo técnico é composto por servidores selecionados por concurso público. Às agências cabe buscar o equilíbrio de interesses, ao assegurar a sustentabilidade das empresas e exigir a prestação do serviço público com qualidade. É uma missão que, em última instância, almeja a proteção do interesse público e o benefício de toda a sociedade, e não as vontades do presidente de plantão.

São esses valores que hoje estão sob ataque de Bolsonaro e, sem nenhuma surpresa, já foram alvo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É impressionante a semelhança de opinião entre eles: o petista chegou a enviar um projeto de lei para submeter os órgãos reguladores aos Ministérios. No governo de Dilma Rousseff, a disputa pelas indicações deixou diretorias incompletas por anos. Para evitar essa atuação capenga, a nova lei das agências, proposta durante a gestão Michel Temer e aprovada em 2019, passou a exigir a convocação de substitutos entre os próprios servidores para conferir quórum completo para a tomada de decisões – algo que tem sido desrespeitado pelo atual governo.

Com métodos diferentes, Bolsonaro e Lula buscam enfraquecer as agências para angariar mais poder. Sem conseguir aprovar a lei que queria, Lula passou a aparelhar órgãos reguladores para controlá-los. Bolsonaro, por sua vez, nunca respeitou as agências – chegou a incentivar seus camisas pardas a perseguir servidores e diretores da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para impedir o aval à vacinação infantil contra a covid-19. É para conter esses desmandos autocráticos que as agências existem. Casos como o da Anvisa mostram por que a independência desses órgãos é uma causa de toda a sociedade e merece defesa intransigente.

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