Editorial do Estadão, 10/04/2022

Como a Federação protege o País



Sem a atuação de governadores e prefeitos, os efeitos da pandemia seriam muito mais drásticos. A Federação impediu que o País ficasse à mercê de Bolsonaro



Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
10 de abril de 2022 | 03h00



Desde o primeiro semestre de 2020, o presidente Jair Bolsonaro responsabiliza governadores e prefeitos pelas consequências sociais e econômicas da pandemia. No dia 2 de abril, ao ser questionado em Brasília por uma pessoa desempregada, o presidente voltou a usar a tática. “Quem tirou teu emprego não fui eu. Eu não fechei nada, nenhum botequim. Quem fechou foi o governador”, disse.

A desculpa bolsonarista revela, em primeiro lugar, um profundo desconhecimento sobre o que é a Federação. A existência dos três níveis federativos – União, Estados e municípios – não autoriza o governo federal a não fazer nada. A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), assegurando, no início da pandemia, o poder de governadores e prefeitos para editar medidas de proteção sanitária, reconheceu a competência comum das três esferas federativas a respeito da saúde pública, tal como prevista no art. 23 da Constituição.

Em nenhum momento, o Supremo disse que o governo federal podia ficar alheio à pandemia. A decisão do STF apenas preservou as atribuições constitucionais de cada esfera federativa, lembrando que o poder estatal não está concentrado no governo federal e que, portanto, o Palácio do Planalto não podia impor seu negacionismo às administrações estaduais e municipais.


Ao contrário do que o presidente e seus fanáticos seguidores querem fazer parecer, foi a atuação dos outros entes federativos – dos Estados e municípios –, com pleno respaldo na Constituição, que permitiu que o País enfrentasse as dramáticas circunstâncias sanitárias, sociais e econômicas dos últimos dois anos. Nunca é demais lembrar que, se dependesse de Jair Bolsonaro, que sempre minimizou a gravidade da covid – era apenas uma “gripezinha”, usada pela oposição para desestabilizar seu governo –, não haveria vacina nem orientação para uso de máscaras. Ou seja, caso a única esfera de poder público fosse aquela regida por Bolsonaro, o número de mortes teria sido muito maior e não existiria agora a menor possibilidade de retomada da economia ou de qualquer outra atividade.

Esse quadro mostra que a realidade federativa não é, como às vezes equivocadamente se pensa, um elemento complicador da atuação estatal. Ao distribuir o poder em três níveis, a Federação tem um profundo caráter democrático, aproximando o cidadão dos órgãos decisórios. Também possibilita maior eficiência do poder público. Com a existência de Estados e municípios, a atuação estatal pode respeitar as especificidades de cada realidade local e atender às suas concretas necessidades.

Na desculpa de Bolsonaro, observa-se ainda uma confusão sobre o funcionamento da sociedade e da própria economia. Não há atividade econômica possível se uma doença mortal, transmissível por vírus, contamina massivamente a população e, enquanto isso, o poder público simplesmente cruza os braços.

Não é por acaso que a maior oposição a Jair Bolsonaro durante a pandemia não veio do PT ou de algum político de esquerda, e sim do governo do Estado de São Paulo. Com um trabalho constante para reduzir os danos da covid – de forma muito especial, os esforços para disponibilizar, o mais rápido possível, a vacina para a população –, a administração estadual paulista mostrou, com fatos, a possibilidade de o poder público enfrentar, de forma responsável e efetiva, a pandemia. São Paulo mostrou que havia outros caminhos além das omissões e confusões do governo federal.

Tem-se, assim, o exato oposto do que diz Bolsonaro. Não fosse a Federação, fornecendo os meios para que a população não ficasse inteiramente à mercê do Palácio do Planalto durante a pandemia, a situação seria hoje muito mais grave.

Com seu desgoverno e seu negacionismo, Jair Bolsonaro evidencia, por contraste, a importância da descentralização do poder. A União não manda sozinha. Há outros entes federativos, com suas respectivas competências – e isso é uma proteção para o País. Afinal, a democracia é um regime de poderes limitados.

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