Um bom artigo sobre a pusilanimidade do governo do PT frente ao índio de araque da Bolívia
Até quando abusarão da nossa paciência?
21 de julho de 2012 | 3h 04
21 de julho de 2012 | 3h 04
Sergio Amaral - O Estado de S.Paulo
O convívio entre os povos, desde os tempos antigos, orienta-se por um
princípio e por uma realidade. O princípio é o de que pacta sunt servanda. Se os
acordos não forem respeitados, eles não existem e, por conseguinte, não existem
regras para a convivência entre as nações. A realidade é o de que a política
internacional, antes de tudo, é uma relação de poder, qualquer que seja a sua
forma. Mao dizia que o poder está na ponta do fuzil. Gramsci acrescentava que o
poder resulta de uma combinação entre força e consentimento. Os Estados Unidos
derrotaram a União Soviética na guerra fria por sua superioridade econômica. Nye
teoriza sobre o poder suave. Moisi introduz o instigante conceito da geopolítica
das emoções.
Pois bem, a América do Sul parece estar buscando reescrever essas duas noções
fundamentais. Em nossa região, os tratados não precisam mais necessariamente ser
cumpridos. Serão cumpridos ou descumpridos em função das afinidades ideológicas
ou da relação de amizade entre os países. É a versão contemporânea das práticas
correntes, entre nós, na Velha República: aos amigos, tudo; aos adversários, a
lei. O Conselho do Mercosul recusou o impeachment de Fernando Lugo sob o
argumento de que, embora a letra da Constituição do Paraguai possa ter sido
respeitada, o rito sumário teria caracterizado o golpe. Pode ser. Mas se
recusarmos as decisões do Legislativo e do Judiciário paraguaios, por
configurarem um simulacro de impeachment, tampouco poderemos aceitar o simulacro
de democracia que vige na Venezuela e muito menos recompensá-la com o ingresso
no Mercosul.
Em nosso subcontinente, a vontade dos menores, curiosamente, parece
prevalecer sobre a dos maiores. Um estudante de intercâmbio em Relações
Internacionais, recém-chegado de Marte, ao ler as notícias sobre a perseguição a
empresários brasileiros, pelo governo boliviano, em represália à decisão do
Brasil de conceder asilo a um senador da oposição, poderia bem supor que a
Bolívia é o país sul-americano com 8,5 milhões de quilômetros quadrados, uma
população de 205 milhões de habitantes e um produto interno bruto (PIB) de US$
2,4 trilhões; e o Brasil, a nação mais frágil, com território de 1 milhão de
quilômetros quadrados, 10 milhões de habitantes e um PIB de US$ 25 bilhões. Às
vezes pode até parecer que é efetivamente assim, mas a realidade é o
inverso.
Infelizmente, esse episódio recente não é um fato isolado. A Bolívia já
ocupou antes uma planta da Petrobrás. O Equador contestou a legalidade de um
empréstimo do BNDES porque se indispôs com a companhia construtora brasileira.
Enquanto isso, o secretário de Comércio da Argentina, com uma simples chamada
telefônica, costuma violar o espírito e a letra do Tratado de Assunção, o ato
constitutivo do Mercosul.
A menção a esses fatos de modo algum sugere que o Brasil deva prevalecer-se
de sua superioridade econômica ou do tamanho de seu mercado para impor a sua
vontade. Ao contrário. Por uma questão de solidariedade para com os nossos
vizinhos e irmãos sul-americanos, e mesmo por interesses econômicos e políticos
próprios, o Brasil deve buscar uma prosperidade compartilhada na região. Por que
não traduzir as palavras em fatos e promover uma abertura generalizada e
unilateral do nosso mercado aos parceiros sul-americanos? Quem tem condições
para propor, acertadamente, uma liberalização multilateral do comércio no âmbito
da Organização Mundial do Comércio (OMC), com mais razão pode comprometer-se com
uma abertura mais ampla no âmbito regional.
Por que não impulsionar, como faz a China, uma integração do espaço econômico
regional por meio do mercado? Na medida em que um acordo de integração é
inviável na Ásia, em face dos vários conflitos entre países da região, as
grandes empresas chinesas, com o velado apoio de seu governo, desenvolveram
mecanismos de complementação industrial e de integração das cadeias produtivas
com as economias vizinhas. Hoje o comércio intra-asiático já representa 53% das
trocas totais dos países do continente. No Mercosul esse porcentual, que já foi
de 21%, de 1992 a 1999, caiu para 14% de 2000 a 2008. O Mercosul já representou
17% das exportações brasileiras, hoje não passa de 11%.
Estamos assistindo a um visível retrocesso comercial e institucional do
Mercosul, entre outras razões, pela tolerância com a violação sistemática das
suas regras e o desrespeito às suas instituições. A benevolência diante do
descumprimento gera o descrédito perante a sociedade, a insegurança jurídica
para os agentes econômicos e a deterioração da imagem do Mercosul entre os seus
parceiros no restante do mundo.
O Brasil tem o dever de fazer concessões aos seus vizinhos de menor peso
relativo nas negociações econômico-comerciais. Mas, em contrapartida, tem o
direito de cobrar o cumprimento do que foi acordado. Temos meios para tanto. Não
se trata de ameaçar ou fazer represálias. Basta cumprir a lei. A Bolívia
dificilmente resistiria ao fechamento da fronteira contra a receptação de carros
roubados ou o tráfico de drogas. O Paraguai, que se soma muitas vezes ao coro
das ameaças contra os agricultores brasileiros, dificilmente suportaria a
suspensão do contrabando na fronteira.
O episódio recente na Bolívia é lamentável. E não somente pela mesquinhez das
ameaças contra produtores, que nada têm que ver com as políticas de seus
governos. Mas também por questionar a legitimidade do asilo diplomático, uma das
mais genuínas tradições da diplomacia latino-americana, consagrada no caso de
Haya de la Torre, um dos próceres ilustres do nosso continente.
A Bolívia só se sente à vontade para praticar atos de verdadeira provocação
por estar convencida de que, mais uma vez, contará com a benevolência do
Brasil.
Diante desse cenário insólito, só nos resta indagar, repetindo Cícero: até
quando, ó Morales, abusarás de nossa paciência?
DIPLOMATA, FOI EMBAIXADOR EM LONDRES E EM PARIS
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