Editorial exemplar do Estadão de hoje

A PF e o ''simbolismo penal''

Ao tentar justificar os métodos utilizados pela Polícia Federal (PF) para realizar a Operação Satiagraha, que foram classificados como atrabiliários por juristas respeitados, independentemente do envolvimento dos acusados em esquemas de corrupção, o ministro da Justiça, Tarso Genro, afirmou que as prisões efetuadas pela PF constituíram a versão brasileira da Operação Mãos Limpas, que colocou empresários, políticos e chefes da máfia italiana atrás das grades, na década de 90, e disse que a atuação da corporação teve "um caráter educativo para a sociedade".

No despacho em que concedeu habeas-corpus a 11 dos 17 presos e autorizou os advogados a terem acesso ao inquérito, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, demoliu as justificativas do ministro da Justiça. Ele criticou o uso abusivo das prisões preventivas e dos grampos telefônicos, lembrou que o ordenamento jurídico brasileiro não prevê prisão com "a finalidade exclusiva de propiciar interrogatório de acusados", classificou a conduta dos federais como "totalmente descabida" e afirmou que eles violaram garantias fundamentais asseguradas pelaConstituição.

Em seu despacho, Mendes transcreve uma análise que o jurista Norberto Bobbio fez da Operação Mãos Limpas, quando vários promotores e juízes italianos invocaram o combate à corrupção para justificar o recurso a métodos legalmente discutíveis "na luta contra o crime". Essa foi a maneira sutil que o presidente do STF encontrou para refutar o ministro Tarso Genro, sem citá-lo nominalmente. O respeito aos direitos individuais "é que permite avaliar a real observância dos elementos materiais do Estado de Direito e distinguir civilização de barbárie", concluiu Mendes, com base em Bobbio.

As advertências do presidente da mais alta corte do País não poderiam ser mais oportunas. Procurando mostrar a eficácia de suas ações de combate ao crime, há muito tempo a PF vem utilizando métodos que têm um sentido pretensamente simbólico ou "educativo", tentando passar para uma opinião pública não afeita às técnicas do direito a idéia de estar provada a culpa dos suspeitos antes mesmo da conclusão dos inquéritos. Com isso, sem terem sido ouvidos, processados e julgados, os suspeitos são apresentados como culpados em caráter definitivo.

É um flagrante desprezo à presunção de inocência e ao direito ao devido processo legal. Um dos exemplos mais ilustrativos desse "simbolismo penal" ocorreu em 2007, durante a Operação Navalha, quando a PF "vazou" um vídeo com cenas de uma suposta entrega de propina ao então ministro Silas Rondeau, tendo como fundo a trilha sonora do filme "O poderoso chefão". Na ocasião, os federais também "vazaram" a informação de que haveria um certo Gilmar Mendes numa lista apreendida, visto que desde sempre sabiam que se tratava de um homônimo do ministro do STF.

O problema do "simbolismo penal", como tem ficado evidente nas operações da PF, é o desprezo às regras mais elementares do direito. Muitas prisões são realizadas sem motivos concretos a justificá-las. Há casos de presos submetidos a degradante exposição pública sem que haja provas que os levem à condenação.

Na Operação Satiagraha, o caso mais absurdo foi o pedido de prisão de uma jornalista da Folha de S.Paulo, sob a justificativa de que teria divulgado dados sigilosos numa reportagem. Mais do que uma pretensão descabida, que em boa hora não foi acolhida pela Justiça, trata-se de uma inversão de valores, pois a corporação que acusa a jornalista de publicar dados sigilosos é a mesma que desprezou o sigilo ao "vazar" para a TV Globo as prisões do especulador Naji Nahas, do ex-prefeito Celso Pitta e do banqueiro Daniel Dantas (que foi novamente preso ontem, por ordem do juiz Fausto Martins De Sanctis).

Evidentemente, corrupção e o crime organizado têm de ser combatidos com o máximo rigor e pelo menos os três principais acusados pela Operação Satiagraha, como dizíamos no nosso editorial de ontem, "não é de hoje que freqüentam a crônica policial".

O cenário que justifica plenamente a investigação da PF está descrito no editorial abaixo, O arranha-céu da promiscuidade. Mas isso não significa que a legitimidade dos fins justifique o desprezo à legalidade dos meios, abrindo caminho para um Estado policial midiático. Pois sem o devido processo legal não existe Estado Democrático de Direito.

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