Editorial do Estadão, 15/12/2025 - "A hora mais escura da aliança atlântica"
A hora mais escura da aliança atlântica
Em entrevista, Trump deixa explícito que a Europa, antes parceira vital dos EUA, passou a ser obstáculo cultural, político e identitário, visão que converge com a da Rússia de Putin
A entrevista de Donald Trump à revista Politico foi a exposição mais franca até agora de sua doutrina para a Europa. Ao insinuar que a vitória da Rússia contra a Ucrânia é questão de tempo, exigir eleições ucranianas sob bombardeio e tratar aliados históricos como fardos, o presidente americano rompeu publicamente com o pilar que sustentou a ordem ocidental desde 1945. A reação de Moscou à sua Estratégia de Segurança Nacional – “amplamente consistente com nossa visão” – apenas confirmou o essencial: não há equívoco, há alinhamento. Pela primeira vez desde a 2.ª Guerra, a estratégia americana evita classificar a Rússia como ameaça. Esse silêncio diz tudo.
Na Casa Branca comandada por Trump, a Europa deixa de ser parceira vital e passa a ser obstáculo cultural, político e identitário. A Ucrânia deixa de ser fronteira avançada da liberdade e passa a ser um terreno negociável. Já a Rússia deixa de ser o agressor central do eixo atlântico para tornar-se elemento de “estabilidade estratégica”. Nada disso é isolacionismo. É reorientação: a substituição da ordem liberal multilateralista pela geopolítica das esferas de influência – exatamente a lógica que levou às grandes guerras e que as democracias ocidentais passaram oito décadas tentando superar.
O impacto mais imediato recai sobre Kiev. Pressionada a aceitar eleições que exigem garantias inexistentes e instada a ceder posições estratégicas no Donbas, a Ucrânia vê ruir a premissa básica de qualquer negociação: não ser forçada à capitulação. A exigência de retirar-se da linha de contenção degradaria a própria capacidade de o país sobreviver. A Europa oferece solidariedade e discursos elevados, mas não armas e recursos na escala necessária. A discrepância entre a retórica europeia e a realidade militar é hoje tão evidente quanto perigosa.
Os riscos para a própria Europa são imensos. Pela primeira vez desde a criação da Otan, Washington não se vê como âncora da segurança intercontinental, mas como árbitro distante entre um bloco “decadente” e um autocrata determinado. A nova estratégia americana, ao retratar o continente como ameaça à “civilização ocidental”, ecoa com precisão a narrativa russa sobre a decadência europeia e legitima movimentos que visam a enfraquecer Bruxelas. Isso ocorre justamente quando generais europeus alertam que o prazo para uma dissuasão crível contra Moscou se encerra em três ou quatro anos – e quando as capacidades críticas para esse esforço continuam concentradas nos EUA.
A erosão da aliança transatlântica não é acidente, mas escolha. Ela reabre a porta para o mundo pré-1945: um continente exposto a potências revisionistas e à velha tentação de acomodar autocratas em nome de uma paz ilusória. A ordem de Helsinque, que consagrou a inviolabilidade das fronteiras, só cai quando o fiador de última instância decide que tais fronteiras são negociáveis. O Ocidente venceu a guerra fria porque manteve coesão moral e estratégica; perde agora porque abandona a primeira e hesita na segunda. A ordem liberal não implode por ataques frontais, mas desmorona por renúncias silenciosas.
É esse o risco estrutural que emerge da entrevista de Trump. A segurança europeia deixa de ser interesse vital dos EUA, a defesa da democracia liberal deixa de ser fundamento de sua política externa e a fronteira civilizatória do Ocidente – hoje traçada nas trincheiras ucranianas – torna-se objeto de barganha. Quando Washington e Moscou convergem na leitura estratégica da Europa, o problema não é diplomático: é histórico.
O Estratégia de Segurança Nacional de Trump documentou o nascimento dessa doutrina. Sua entrevista explicita suas consequências. Se a Europa não reagir – rearmando-se, unificando-se e abandonando a fantasia de que Washington sempre estará lá –, verá seu destino decidido por terceiros. Alianças não morrem em guerras; morrem antes delas, quando os aliados deixam de acreditar na sua razão de ser. A entrevista de Trump é essa advertência. A Europa ainda tem tempo para ouvi-la. Mas ele é curto.
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