Editorial do Estadão, 09/07/25 - "O Estado contra o cidadão"
Estado contra o cidadão
Assassinato do marceneiro Guilherme Ferreira escancara não só o despreparo da PM paulista, como a falência de um modelo de segurança que adota a barbárie como padrão de atuação policial
Numa democracia liberal, como é a brasileira, presume-se que as leis e as instituições sirvam para proteger os cidadãos do arbítrio do Estado. No entanto, a julgar pelo ultrajante caso de um rapaz negro assassinado em São Paulo por um policial militar que o confundiu com um assaltante só porque a vítima corria para pegar um ônibus depois do trabalho, alguns cidadãos, a depender da cor da pele e da condição financeira, estão totalmente à mercê de um Estado que não os reconhece como titulares de direitos. Para o marceneiro Guilherme Dias Santos Ferreira, de 26 anos, a democracia liberal não existe.
Tudo nesse caso prova a seletividade do aparato estatal na aplicação das leis e dos princípios constitucionais. Primeiro, o policial militar que atirou contra Guilherme, o cabo Fabio de Almeida, que estava de folga, aparentemente contrariou todos os manuais de conduta policial numa sociedade que se presume civilizada. Conforme se vê nas abundantes e claras imagens disponíveis, o agente não pretendia prender ninguém, e sim executar aquele que julgava ter tentado roubar sua moto momentos antes. Mesmo que tivesse sido o caso, isto é, mesmo que o marceneiro tivesse realmente tentado roubar sua moto, o cabo da PM não poderia ter atirado num suspeito desarmado. Num Estado em que prevalece a presunção de inocência, o braço armado desse mesmo Estado deve prender o suspeito, e não o executar com um tiro na cabeça no meio da rua.
Mas a violência estatal contra o cidadão Guilherme Ferreira não parou aí. Conduzido a uma delegacia, o cabo Fabio de Almeida contou com a gentileza do delegado Kauê Danillo Granatta, do Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa da Polícia Civil, que resolveu tipificar o crime, pasme o leitor, como “homicídio culposo”, cuja pena é de detenção de um a três anos. Por essa razão, o policial militar foi solto após pagar fiança no valor de R$ 6,5 mil. Não se pode condenar quem veja nessa esdrúxula tipificação – afinal, o erro sobre a pessoa não exclui o dolo – uma manobra de acobertamento. Um Estado em que criminosos que vestem farda são protegidos não é um Estado nem liberal nem democrático. É um Estado falido, em que prevalecem as relações pessoais e o poder do mais forte.
Embora tenha sido um caso de flagrante abuso policial, coroado por uma inaceitável tipificação do crime, nem o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, nem seu secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, se pronunciaram, passados dias do acontecido – seja para confortar a família da vítima, seja para cobrar punição exemplar, seja para prometer alguma providência para que isso não se repita. Silêncio absoluto.
Essa talvez seja a pior forma de violência do Estado contra seus cidadãos: tratá-los como se fossem indignos até mesmo de algumas palavras de pesar quando morrem pelas mãos de seus agentes, enquanto estes gozam de impunidade escandalosa. Tal comportamento espelha uma visão absolutamente distorcida do que vem a ser segurança pública.
De uns anos para cá, aos olhos de alguns policiais de São Paulo, se um homem negro, como era Guilherme Ferreira, correr na rua, automaticamente passa a ser suspeito de algum crime, fazendo letra morta do princípio constitucional da presunção de inocência. O homicídio de mais um inocente praticado por um policial lança luz, é claro, sobre o despreparo técnico e emocional de alguns integrantes da PM paulista, outrora conhecida como a mais bem equipada e treinada do País. Longe de representar um lamentável erro episódico, a morte do trabalhador é o corolário trágico de uma construção institucional, e não só fruto do livre-arbítrio do guarda na esquina.
Se a PM de São Paulo passou a agir de modo truculento e fatalmente inconsequente, sob o signo de um espírito de valorização da violência e desprezo pela vida humana, é porque muitos policiais passaram a se sentir autorizados a agir assim por seus superiores – a começar pelo secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite.
Do irremediável sr. Derrite não há mais o que dizer, e é incrível que ainda esteja no cargo. Já do sr. governador, que se apresenta como um democrata, esperava-se mais.
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