Artigo de Rodrigo Silva, Estadão, 22/07/2025.
Opinião
Democracia não pode ser seletiva; ou vale para todos (inclusive para quem detestamos) ou não vale
Enquanto esquerda minimiza abusos de Cuba e Venezuela, direita passa o pano para El Salvador e Hungria
Por Rodrigo da Silva
22/07/2025 | 09h30
Imagine um país em que um único juiz possa investigar, acusar, julgar e punir – tudo ao mesmo tempo. Um lugar onde a polícia prende por crime de opinião; jornalistas têm as suas contas bloqueadas por decisão de um único ministro e plataformas digitais são ameaçadas com multas milionárias caso não obedeçam decisões altamente questionáveis, sem direito ao contraditório.
É fácil apontar o dedo para o Supremo Tribunal Federal. Nos últimos anos, ministros da Corte brasileira foram repetidas vezes acusados de exercer funções típicas de outras esferas de poder e violar princípios do devido processo legal. Como este jornal denunciou tantas vezes, a lista de atropelos institucionais é vasta.
À esquerda, o STF vem sendo defendido sob a justificativa de que exerce um papel indispensável na proteção da democracia. Lula chegou a elogiar Alexandre de Moraes em diferentes ocasiões, assumindo que o ministro é “orgulho de todo o Brasil” e um homem de “muita coragem e muita dignidade”. Também concedeu a ele o mais alto grau da Ordem de Rio Branco.
O discurso que o presidente brasileiro aplica em terras tupiniquins não serve em solo estrangeiro.
Nem faz tanto tempo assim, Lula minimizou os abusos do governo da Nicarágua e comparou Ortega com Angela Merkel. Também defendeu a ditadura cubana e disse que, se a ilha “não tivesse um bloqueio, poderia ser uma Holanda”. E exaltou a China, por ter “um partido político forte e um governo forte”, que “tem controle e poder de comando”.
O PT, partido que ele lidera, chamou a última eleição na Venezuela, encerrada com um autogolpe, de “uma jornada pacífica, democrática e soberana”. Também parabenizou Vladimir Putin pela eleição de mentirinha na Rússia e chamou a vitória de “feito histórico”.
Se engana quem pensa que a aproximação do PT com esses regimes ocorre apenas no campo diplomático ou comercial. Lula não chama Fidel Castro de “maior de todos os latino-americanos”, nem assume que havia “excesso de democracia” na Venezuela de Hugo Chávez, porque isso melhora o status do Brasil no mundo. Faz isso porque tem aproximação ideológica.
A direita, claro, repudia todas essas declarações. Mas a indignação que o grupo alimenta contra o autoritarismo do Supremo também é seletiva: condena quando afeta seus aliados, ignora quando favorece seus líderes.
Considere o caso de El Salvador.
Em 2021, assim que o partido de Bukele, o Nuevas Ideas, conseguiu maioria na Assembleia Legislativa, seus parlamentares destituíram todos os magistrados da Sala Constitucional da Suprema Corte e o procurador-geral da República. A Corte foi imediatamente preenchida com nomes alinhados ao presidente.
Desde então, os ganhos políticos de Bukele não foram pequenos. Por exemplo: nenhum chefe de Estado eleito antes dele passou mais de 5 anos no cargo porque não há reeleição presidencial consecutiva em El Salvador. Ainda assim, Bukele conseguiu burlar essa restrição com o apoio da Suprema Corte.
Em 2022, a Assembleia Legislativa, a pedido de Bukele, declarou estado de exceção. A medida provocou a prisão de dezenas de milhares de pessoas – incluindo inúmeros inocentes – sem devido processo legal. O próprio Bukele admite o problema. Algumas organizações falam em até 30 mil detenções incorretas.
Há um silenciamento sistemático contra vozes dissonantes em El Salvador – o que inclui um episódio de uso em larga escala do spyware Pegasus contra jornalistas e membros de organizações da sociedade civil.
Embora Bukele se promova como um presidente libertário, conectado e transparente, o seu governo acumula diferentes episódios de censura direta e indireta, com a conivência de um Judiciário aparelhado pelo Executivo.
A direita brasileira defende esse autoritarismo sob a justificativa de que Bukele, apesar dos “excessos”, é indispensável para combater o crime organizado no país. Em março, Jair Bolsonaro chegou a dizer que faria “semelhante a El Salvador” se voltasse ao Planalto.
E a Hungria?
Desde que Orbán retornou ao cargo de primeiro-ministro em 2010, o país passou por uma transformação profunda. Embora ainda seja formalmente uma democracia parlamentar, tanto o Judiciário quanto a imprensa, o Parlamento e até as universidades húngaras foram progressivamente subordinados ao Executivo.
Já em 2011, o Fidesz, partido de Orbán, aprovou uma nova Constituição sem apoio da oposição. E desde então, emendou o documento mais de dez vezes, não para fortalecer a democracia, mas para blindar decisões do governo e restringir mecanismos de contestação.
Donald Trump e Viktor Orbán em julho de 2024 Foto: Zoltan Fischer/Escritório do Primeiro-ministro da Hungria via AFP
Por exemplo: em 2012, a Hungria reduziu a idade de aposentadoria dos juízes de 70 para 62 anos, o que forçou a saída de quase 300 magistrados e permitiu a nomeação de apadrinhados de Orbán. A Corte Constitucional condenou a medida. Mas o governo, no lugar de revogá-la, mudou a Constituição para legalizá-la.
Com apoio do Parlamento, Orbán também reestruturou o Judiciário, criando o Gabinete Nacional da Justiça – um órgão com poder para nomear e controlar juízes. Desde então, a independência judicial na Hungria foi severamente reduzida. O Executivo passou a controlar a carreira, o orçamento e a autonomia funcional da magistratura.
A Hungria é um caso de almanaque sobre como o autoritarismo pode ser implementado legalmente, sem tanques nas ruas, apenas manipulando leis, nomeações e estruturas – exatamente como a direita brasileira acusa o Supremo Tribunal Federal.
Ainda assim, em fevereiro de 2024, pouco depois da PF apreender o seu passaporte, Jair Bolsonaro passou dois dias hospedado na Embaixada da Hungria em Brasília.
A aproximação entre Bolsonaro e Orbán não é apenas diplomática – é ideológica. Em 2022, o ex-presidente brasileiro rasgou elogios a Orbán, “que eu trato praticamente como um irmão, dadas as afinidades que nós temos”.
E ainda há a aproximação com Donald Trump. O presidente americano diz estar “muito preocupado” com os ataques à liberdade de expressão orquestrados pelo STF. Mas como escrevi nessa coluna, apesar dos discursos, Trump não possui um bom histórico como protetor da liberdade de expressão.
Em 2015, ele chegou a defender “o fechamento” da internet para impedir que as pessoas fossem cooptadas online para o terrorismo:
“Algumas pessoas dirão: ‘Liberdade de expressão, liberdade de expressão’. Essas pessoas são tolas. Temos muitas pessoas tolas.”
No ano passado, em pelo menos quatro oportunidades, Trump defendeu a prisão de qualquer pessoa que criticasse a Suprema Corte americana em público – exatamente como Bolsonaro faz com a Corte brasileira.
“Eles foram muito corajosos, a Suprema Corte. Muito corajosos. E eles levam muitos golpes por causa disso.”
“Essas pessoas deveriam ser presas pela maneira como falam sobre nossos juízes e ministros, tentando influenciar os seus votos e decisões.”
Nos meses anteriores à eleição de 2024, Trump também pediu a retirada das licenças de transmissão de emissoras americanas em pelo menos 15 ocasiões – e repetiu essa ameaça outras vezes desde que virou presidente.
No fim, não se deixe enganar pelos personagens: Lula normaliza regimes que produzem autogolpes de Estado, Alexandre de Moraes atropela a democracia em nome da democracia, Bolsonaro admira quem restringe a liberdade aparelhando a Justiça, e Trump persegue a liberdade de expressão.
Não há valores, apenas interesses.
Democracia não se defende a granel. Ou ela vale para todos – inclusive para quem detestamos – ou não vale para ninguém.
O resto é só barganha de poder disfarçada de princípio.
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