Segundo Editorial do Estadão, 15/11/2023

 O problema de um STF protagonista


Corte tem importante papel contramajoritario na defesa da Constituição. Mas avanços sociais são promovidos por exercício de cidadania, não por Judiciário dito esclarecido


É cada vez mais comum ouvir que, nas últimas décadas, o Supremo Tribunal Federal (STF) assumiu a liderança na defesa de direitos fundamentais no Brasil. Em geral, essa afirmação tem um tom de celebração. O País conta com uma Corte constitucional que vem promovendo importantes direitos e garantias, em uma trajetória de claro progresso civilizatório – e tudo isso seria manifestação de um bom funcionamento do Estado Democrático de Direito. O STF chega aonde o Congresso mostra-se incapaz de chegar.

De fato, o Supremo tem sido importante na defesa do regime democrático; de forma especial, entre 2019 e 2022, quando o governo Bolsonaro tentou, de diversas formas, corromper a separação de Poderes, o princípio federativo e o sistema eleitoral. Ao mesmo tempo, admitir os bons serviços prestados pela Corte não é incompatível com reconhecer as muitas vezes em que o STF se equivocou, sendo ele próprio fonte de problemas (não de soluções) e fator de instabilidade (não de segurança e previsibilidade).

No entanto, seja qual for a avaliação que se faça dos erros e dos acertos do Supremo nos últimos anos, é de admitir que o País tem um enorme problema se continuamente os direitos fundamentais precisam ser promovidos não por uma maioria política, mas pelo Judiciário, com sua atuação contramajoritária. Eis o fato incontestável. Se o STF é o grande promotor dos direitos e garantias no País, isso significa que a população brasileira, por meio de seus representantes eleitos, tem sido incapaz de respeitar e promover esses direitos.

Não há dúvida de que uma Corte constitucional tem importante papel contramajoritário. Sua missão é garantir o respeito à Constituição, seja qual for a vontade política majoritária do momento. No entanto, se isso é contínuo – se os “avanços civilizatórios” têm de ser promovidos habitualmente pelo STF, e não por meio da maioria política –, tem-se um motivo não de celebração, mas de profunda preocupação.

Essa proatividade continuada do Supremo é sintoma de que a compreensão da população, em sua maioria, está indo por outros rumos, acolhendo outros significados, assumindo outros valores. Há um descolamento, não apenas momentâneo, entre o Direito (afirmado pelo STF) e a vontade política, o que é problemático sob diversos aspectos.

Em primeiro lugar, é uma fantasia pensar que basta o STF declarar direitos para que eles sejam devidamente cumpridos. Nessa ilusão, há uma sobrevalorização não apenas do alcance do poder estatal, mas da própria ideia de direito, como se seu reconhecimento formal por meio de uma decisão judicial fosse suficiente para assegurar sua efetividade.

Em segundo lugar, é preciso contextualizar e relativizar a ideia de avanço civilizatório promovido por uma Corte constitucional. Há verdadeira melhoria no respeito a direitos fundamentais se esses direitos têm de ser declarados contra a vontade da maioria da população? Talvez se possa dizer, a depender das circunstâncias, que determinada decisão judicial constitui um atestado do atraso civilizatório do País. Mas declarar que tal decisão instaura, por si só, um novo status civilizatório no País é compreender, de forma muito superficial, o que é civilização, respeito ao outro ou mesmo desenvolvimento social e humano.

Cabe ainda questionar a própria noção de avanço civilizatório realizado por 11 pessoas não eleitas. Não há efetivo progresso humano sem representação ou participação popular, com soluções ditadas de cima para baixo. Estado Democrático de Direito não é uma espécie de sistema aristocrático esclarecido, com alguns poucos ditando as regras sobre todos os demais. A civilização não é obra de decreto judicial.

Além das questões de competência e de efetividade – que não devem ser desprezadas –, é preciso advertir que a concepção de um STF promotor-mór da civilização não se contrapõe às causas do atraso brasileiro. Segue o mesmo padrão, cujos frutos são bem conhecidos: o de uma cidadania outorgada de cima para baixo, que nunca é plena nem genuinamente autônoma.

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