Editorial do Estadão, 22/11/2023

 A gramática do privilégio


Em nenhum lugar do mundo juízes têm tantos privilégios como no Brasil. Além de férias de dois meses, terão a cada três dias de trabalho um de folga, que pode se converter em dinheiro


A partir de agora, os juízes federais de 1.º e 2.º graus que acumularem funções administrativas e processuais terão, para cada três dias de trabalho, direito a um dia de folga. Ou, se eles preferirem, poderão converter esse direito em mais dinheiro no contracheque no fim do mês. O mais novo privilégio foi aprovado pelo Conselho da Justiça Federal (CJF), cujo colegiado é formado por seis ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e pelos presidentes dos seis Tribunais Regionais Federais (TRFs).

Eis a realidade do Judiciário brasileiro. Sua alta cúpula, preocupada com a plena efetividade dos direitos no País e com a crise social e econômica de tantas famílias brasileiras, decidiu que os magistrados federais devem ter uma vida ainda mais distante da realidade dos pobres mortais. Nada de trabalhar todos os dias da semana. Se um juiz exercer juntamente com a atividade jurisdicional alguma função administrativa, a cada três dias de trabalho ele pode tirar um dia de folga.

O mais novo privilégio tem nome pomposo: instituto da licença compensatória pela cumulação de atividade jurisdicional com o exercício de função administrativa. Segundo a conselheira Marisa Ferreira dos Santos, presidente do TRF-3, o reconhecimento da licença é constitucional e imperioso. Em que mundo vivem essas pessoas para afirmarem, sem ruborizar, que o direito à folga de um dia para cada três dias de trabalho é uma necessidade, “no interesse e na salvaguarda” de uma “das mais importantes instituições da República brasileira”?

A escancarar a mentalidade de insatisfação com os privilégios já adquiridos – sempre há disposição por mais um –, a resolução do CJF determina que a nova folga não deve ultrapassar dez dias por mês. Talvez o colegiado intua que, com a resolução aprovada, algum tribunal no País seja capaz de elaborar alguma contabilidade criativa e atribuir mais de dez dias de licença por mês a seus juízes. O céu é o limite para a casta dos magistrados federais.

Escandalosamente antirrepublicana, toda essa jogada foi feita sob o argumento da “equivalência” entre magistratura e Ministério Público. No caso, em janeiro deste ano, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), o órgão que deveria fiscalizar o Ministério Público, estabeleceu para seus membros o direito à licença de um dia para cada três dias de trabalho com acúmulo de funções. Agora, o CJF estendeu o privilégio aos juízes federais. Na manobra, alegou que estava apenas cumprindo a Constituição de 1988. Para eles, o artigo 129, § 4.º, segundo o qual se aplicam ao Ministério Público, no que couber, os princípios e prerrogativas da magistratura, significa equivalência de regalias.

Nas palavras da presidente do STJ e do CJF, ministra Maria Thereza de Assis Moura, “para os integrantes da magistratura, a importância do tratamento igualitário entre as carreiras (do Ministério Público e do Judiciário) é de fácil percepção, além de estruturante para o fim de se resguardar os postulados do Estado Democrático de Direito, (...) bem como para atuar na defesa das instituições e dos direitos garantidos pela Constituição”. Ninguém duvida de que os juízes facilmente percebem a importância da equivalência de privilégios. A toda a hora recorrem a ela para angariar mais uma vantagem. Difícil mesmo é a população entender a razão de tamanha diferença de tratamento entre cidadãos brasileiros. Difícil mesmo é compreender por que, para o bom funcionamento do Estado Democrático de Direito, juízes e membros do Ministério Público devem ter o dobro de férias de todo o restante dos brasileiros. Para piorar, tudo isso é feito sob anuência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Além da injustiça em si e do aumento de gastos públicos que a medida produz, é muito grave que uma evidente situação de privilégio seja vista, por quem deve aplicar o Direito no País, como algo correto e adequado. Isso significa que a bússola moral, cívica e legal da cúpula do sistema de Justiça está avariada. Consideram-se, de fato, superiores ao restante da população.

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