Editorial do Estadão, 17/11/2021

 

O pobre é só pretexto



Este é o governo Bolsonaro: prefere não honrar as dívidas reconhecidas pela Justiça para conceder aumento, em ano eleitoral, a servidor público


Notas&Informações, O Estado de S.Paulo
17 de novembro de 2021 | 03h00


Depois de sua aprovação em dois turnos pela Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 23/21, que limita o pagamento dos precatórios e altera as regras do teto de gastos, foi encaminhada ao Senado. A expectativa do governo é de que seja analisada pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) na semana que vem. Se a proposta original já era um escândalo – sem fazer o dever de casa, o Executivo federal deseja institucionalizar o calote –, a cada dia acrescem-se novos contornos de irresponsabilidade e de oportunismo eleitoral.

De cara, a PEC dos Precatórios é antirrepublicana. O governo Bolsonaro deseja uma autorização para não cumprir obrigações reconhecidas pela Justiça. Durante o fim de semana, o presidente Jair Bolsonaro tratou uma vez mais o tema com inexatidão e irresponsabilidade. “O que é a PEC dos Precatórios? São dívidas que remontam 30, 40 anos, e que de repente o STF falou que nós temos que pagar de uma vez só”, disse.

Não foi de repente, tampouco foi o Supremo quem decidiu que o governo tem de “pagar de uma só vez”. Todos – pessoas físicas ou jurídicas, de direito privado ou público – devem cumprir as obrigações reconhecidas pela Justiça. A manobra agora tentada pelo governo Bolsonaro (mudar a Constituição para não ter de pagar o que deve) afronta a segurança jurídica e prejudica o ambiente de negócios. Quer mudar as regras do jogo depois de o jogo já ter terminado.


A PEC 23/21 é uma evidente irresponsabilidade, a merecer imediata rejeição. Para se tornar menos indigesta, o governo federal atribuiu-lhe suposta finalidade social. Segundo o Palácio do Planalto, o calote dos precatórios, combinado com o abandono da regra fiscal relativa ao teto de gastos, seria medida necessária para o pagamento do programa de transferência de renda para a população carente.

A pretensa finalidade social da PEC dos Precatórios foi desmentida várias vezes por especialistas em contas públicas, que apresentaram alternativas para a continuidade do programa social, sem precisar abandonar o teto de gastos. No entanto, o governo federal não se interessou por esses outros caminhos, uma vez que não dariam a Jair Bolsonaro precisamente o que ele mais almeja.

Com a PEC dos Precatórios, o presidente Bolsonaro não quer dinheiro para pagar o Bolsa Família (ou o Auxílio Brasil). Se fosse para isso apenas, não precisaria alterar as regras constitucionais. O objetivo do governo federal é ter autorização para realizar no ano que vem – ano de eleições – outros gastos, eleitoralmente interessantes. No mês passado, veio à tona a articulação, por parte de alguns deputados, para que a aprovação da PEC 23/21 permitisse aumentar o Fundo Eleitoral de R$ 2 bilhões para R$ 5 bilhões, além de incluir emendas de relator no valor de R$ 16 bilhões.

Agora, a execução dessa modalidade de emenda foi suspensa por decisão do Supremo. Mas a questão de fundo permanece. Com o discurso de que é preciso ter dinheiro para programa social, tenta-se ampliar as verbas para outras finalidades. Algumas delas são tão escusas, tão pouco transparentes, que sua execução foi barrada pelo Judiciário.

E o descaramento só aumenta. Durante a viagem a Dubai, o presidente Bolsonaro admitiu que o espaço fiscal aberto pela PEC dos Precatórios é muito maior do que o necessário para pagar o Auxílio Brasil e – vejam só – o governo pensa até em conceder aumento ao funcionalismo público. “Dá para atender a população mais carente, dá para atender a questão orçamentária e pensamos até, dado o espaço que está sobrando, em atender até em parte os servidores”, disse.

Este é o governo Bolsonaro: prefere não honrar as dívidas reconhecidas pela Justiça para conceder aumento, em ano eleitoral, a servidor público. E a manobra é realizada sob suposta motivação social. Jair Bolsonaro consegue ser a cabal farsa de suas promessas. Na campanha, vende antipetismo; no governo, entrega a essência do lulopetismo: vale-se dos pobres para seus interesses eleitorais, mesmo que isso destrua o País.

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