Editorial do Estadão, 16/11/2025 - "A bagunça dos programas sociais"
A bagunça dos programas sociais
TCU mostra que políticas públicas são dispersas e mal geridas, e a pobreza segue intacta. Uma governança eficiente pode fazer mais pelos pobres do que qualquer aumento improvisado de gastos
O retrato traçado pelo Tribunal de Contas da União (TCU) é incômodo: o Estado brasileiro é pródigo em gastos e pobre em resultados. O mais recente Relatório de Fiscalizações em Políticas e Programas de Governo revela um país que despende centenas de bilhões de reais em programas sociais, e, no entanto, vê a pobreza e a desigualdade persistirem quase intactas. O problema do Brasil não é gastar pouco, mas gastar mal.
Falta coordenação entre ministérios, sobram programas sobrepostos e a cultura de avaliação é praticamente inexistente. O Cadastro Único, espinha dorsal da assistência social, permanece desatualizado e vulnerável: parte dos registros não é revisada há anos e faltam mecanismos de verificação cruzada entre os dados, o que compromete a focalização e gera pagamentos indevidos. Na Previdência Rural, benefícios são concedidos sem comprovação de vínculo, drenando recursos que deveriam amparar os mais pobres. No Mais Médicos, há carência de indicadores de desempenho e falhas no acompanhamento dos resultados. O Estado de bem-estar social brasileiro opera, assim, como um conjunto de iniciativas bem-intencionadas, mas desgovernadas – movidas por impulsos políticos, não por evidências.
Aprimorar sua eficiência não exige ruptura, mas método. É possível auferir do diagnóstico do TCU soluções para reduzir desperdícios dos programas sem alterar seu desenho: atualizar e integrar o Cadastro Único às bases do INSS, da Receita Federal, da Educação e da Saúde; monitorar continuamente resultados; padronizar metas e indicadores; e fortalecer a capacidade técnica de Estados e municípios. Em suma, gastar melhor com o que já se tem. Se o poder público não pode, no curto prazo, reformar todo o seu modelo de proteção social, pode ao menos gerenciá-lo como se quisesse que funcionasse.
A desordem, contudo, não é só técnica, é cultural e política. A expansão da assistência social tornou-se um fim em si mesma. Desde a redemocratização, nenhuma gestão explorou essa lógica com tanto vigor – e tão poucos resultados – quanto as petistas. Em nome da “inclusão social”, o País multiplicou programas, ampliou transferências e produziu uma dependência estrutural que, em vez de emancipar, perpetua a vulnerabilidade. O Bolsa Família, que deveria ser instrumento de transição, virou ativo eleitoral. A política social converteu-se em plataforma de poder, não política sadia de Estado. Decerto o populismo à direita também surfou nessa onda, mas foi a hegemonia petista que consolidou a confusão entre compaixão e clientelismo. E cobrou o preço mais alto: o de um país menos produtivo, mais endividado e cada vez mais dependente do favor público.
Entre o bem-estar e o mal-estar social, o Brasil construiu o pior dos dois mundos: um Estado generoso no gasto e pobre em resultados. Enquanto 45% da população figura em cadastros de assistência, o estoque de capital em infraestrutura encolheu de 53% do PIB para 34% nas últimas quatro décadas. A produtividade se arrasta; o assistencialismo, não. A falácia de que responsabilidade fiscal é oposta à responsabilidade social continua a justificar políticas dispendiosas e ineficazes – e a afastar o País da prosperidade.
O verdadeiro Estado social não é o que distribui mais, mas o que emancipa mais. E eficiência não é mera tecnocracia: é justiça. Cada real mal gasto em fraudes e privilégios é um real a menos para quem precisa. Diagnósticos como o do TCU deveriam servir de ponto de partida para um pacto mínimo de racionalidade pública. Reformas estruturais, como as propostas pelo projeto da Lei de Responsabilidade Social (que, por razões nada republicanas, foi abandonado em algum escaninho do Congresso), poderiam cimentar políticas de Estado que combinem metas de redução da pobreza com disciplina fiscal e avaliação contínua.
De imediato, mesmo sem mudanças de fundo no desenho das políticas sociais, o poder público pode fazer muito se administrá-las com a seriedade que sempre reservou às suas promessas. Não há incompatibilidade entre solidariedade e rigor, entre empatia e método. O desperdício é a forma mais perversa de injustiça. Não se vence a pobreza com discursos generosos, mas com governos capazes.
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