Editorial do Estadão, 13/10/2025 - "Falta de decoro generalizada"

 


Falta de decoro generalizada
Relatório mostra que quase todo o MP recebe remuneração anual acima do teto constitucional. Ou seja, não é exceção, mas regra – que desonra a missão de defender a ordem jurídica
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O Estadão teve acesso a um relatório da Transparência Brasil que mostrou que, no ano passado, praticamente todos os membros do Ministério Público (98%) receberam remuneração anual acima do teto constitucional. A falta de decoro foi quantificada: o valor total dos pagamentos extrateto alcançou inacreditáveis R$ 2,3 bilhões. Mais uma bofetada na cara dos contribuintes de um Estado que nem ao menos se esforça para fazer valer seu poder de tributar retribuindo a todos os seus cidadãos bons serviços públicos e condições de vida minimamente dignas.

Os Ministérios Públicos estaduais limitaram-se a dizer que os pagamentos acima do teto seguiram rigorosamente a legislação, o que só adiciona insulto à injúria, pois sabe-se muito bem como é fácil dar uma demão de legalidade aos chamados penduricalhos, malgrado se tratar de uma desabrida afronta ao art. 37, inciso XI, da Constituição. O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), órgão que deveria exercer o controle administrativo da instituição, nem sequer se dignou a responder. Pudera. Com frequência, é o próprio CNMP que cria indevidamente muitos dos penduricalhos que distorcem a remuneração dos membros do parquet.



O Ministério Público é uma das instituições mais poderosas e respeitáveis da República. A Constituição de 1988 incumbiu-lhe da nobilíssima missão de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis. A confiança que a sociedade deposita em seus promotores e procuradores deriva justamente da expectativa de que sua atuação seja movida por um senso de dever e por uma integridade funcional que transcende interesses corporativos. Logo, quando o próprio Ministério Público afronta a Lei Maior, em vez de protegê-la, abjura a razão de sua existência.

Antes a afronta fosse só financeira – é também institucional. A Constituição estabelece, de forma inequívoca, que nenhum servidor público pode receber acima do subsídio de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Em 2024, isso significava um teto anual de R$ 525,7 mil. Qualquer valor além disso é inconstitucional, por mais que se busquem justificativas técnicas ou “interpretações” convenientes para justificar a extravagância. A falácia de que os privilégios “seguem a legislação” beira a confissão de culpa, haja vista que os próprios órgãos de controle do Ministério Público criam as brechas para driblar o mandamento constitucional.

Esses subterfúgios tomam a forma de “verbas indenizatórias”, “auxílios” e “gratificações eventuais”, pagos com regularidade e abrangência incompatíveis com sua natureza. Somadas aos salários, essas verbas, ademais isentas de Imposto de Renda, resultam em remunerações muito acima do limite constitucional. Em qualquer outra instituição, o acinte já seria grave; quando parte da instituição incumbida de zelar pela ordem jurídica, é um escândalo que deveria lotar ruas e avenidas Brasil afora em protesto. O Ministério Público, que exige moralidade e probidade de todos os demais cidadãos, não pode se permitir tamanho desvio ético sem comprometer sua respeitabilidade.

O Congresso, ao discutir a reforma administrativa, tem uma oportunidade de ouro de corrigir parte dessa distorção. Entre as propostas apresentadas pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), coordenador do grupo de trabalho debruçado sobre o tema na Câmara, está uma emenda à Constituição que restringe os tais supersalários, impondo um teto real às verbas indenizatórias. Essas verbas, segundo o texto revelado por este jornal, deverão ter natureza reparatória e se destinar apenas a despesas episódicas, eventuais e transitórias. Ou seja, nada além de uma obviedade.

A resistência corporativa a esse tipo de proposta será tão forte quanto previsível. O que se espera, porém, é que o Legislativo resista à pressão e atue em nome do interesse público. Nenhuma categoria de servidores, por mais importante que seja, pode se colocar acima da Constituição. E, entre todas, o Ministério Público é o último que poderia fazê-lo. A indulgência com seus próprios privilégios é a antítese da função de fiscal da lei.

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