Artigo de Demétrio Magnoli, O Globo, 20/02/2023

 Guerra na Ucrânia: a paz e a paz de Lula


Demétrio Magnoli


A 'solidariedade' de Bolsonaro a Putin tinha relevância mínima, devido ao autoimposto isolamento diplomático do Brasil. A de Lula, pelo contrário, tem implicações significativas

Terminou o inverno amargo da guerra posicional de atrito na Ucrânia. A Rússia deflagrou sua ofensiva no Leste, cuja meta mínima é avançar até os limites das províncias de Luhansk e Donetsk, ocupando todo o Donbass. A Ucrânia prepara uma futura contraofensiva no Sul, cujo objetivo é a reconquista de Melitopol, cindindo ao meio as forças russas na “ponte terrestre” entre Rússia e Crimeia. Lula declarou que quer ajudar a mediar a paz na Ucrânia. Se fosse verdade, deveria torcer pelo fracasso da ofensiva russa e pelo sucesso da contraofensiva ucraniana.

A hipotética tomada de todo o Donbass pela potência invasora só prolongaria o conflito, pois uma esmagadora maioria dos ucranianos rejeita a troca da paz pela entrega de um quarto de seu país aos russos. O insucesso da ofensiva putinista seguido por uma retomada ucraniana dos territórios meridionais provocaria um choque político e militar dramático, talvez suficiente para levar o Kremlin à mesa de negociações. Nesse caso, sob pressão de seus aliados ocidentais, o governo ucraniano poderia aceitar uma vitória parcial: o recuo da Rússia até as posições ocupadas em 24 de fevereiro de 2022.

A corrente ultranacionalista russa quer um triunfo total: a derrubada do governo de Kiev e a imposição de um protetorado informal sobre a Ucrânia. Putin, porém, desistiu do objetivo maximalista depois de sucessivos fracassos militares. Hoje, ao que tudo indica, persegue uma vitória parcial: o controle do Donbass e da “ponte terrestre” para a Crimeia. Se a atual ofensiva funcionar, o chefe do Kremlin tentaria congelar o conflito por meio de um armistício: um longo interregno antes da próxima invasão. Ele aposta na quebra da unidade ocidental em defesa da soberania ucraniana. É nesse contexto que se deve interpretar a retórica de Lula pela paz.

No final de 2019, Lula concedeu uma entrevista à RT, veículo oficioso do Kremlin. Nela, exprimiu sua visão da geopolítica global:

— Uma coisa que me deixa orgulhoso é o papel desempenhado por Putin na História mundial, o que significa que o mundo não pode ser tomado como refém pela política dos EUA.

A Rússia promovera, cinco ano antes, a primeira invasão da Ucrânia. O então candidato à Presidência enxergava a Rússia imperial putinista como fator de equilíbrio geopolítico. Sua cruzada diplomática por negociações de paz na Ucrânia inscreve-se nessa visão.

Segundo Lula, o “clube da paz” excluiria os EUA e os países europeus “envolvidos na guerra”. (Registre-se, de passagem, que a Carta da ONU impugna as palavras do presidente: o auxílio econômico e militar a uma nação submetida a uma guerra de agressão não transforma os Estados que a apoiam em partes do conflito.) Contudo, partindo de sua falsa premissa, Lula sugere que China e Índia figurem como núcleo do tal “clube da paz”, ou como mediadores entre Moscou e Kiev.

A iniciativa de Lula não tem chance de prosperar, pois a Ucrânia rejeitará uma mediação conduzida por aliados da Rússia que se recusam a exigir a integridade territorial ucraniana. Mas o objetivo dela não é a busca da paz. No lugar disso, busca-se oferecer a Putin uma vitória diplomática: a exibição da Rússia como nação aberta a negociações e, no polo oposto, da Ucrânia como obstáculo intransponível à paz. O timing da proposta lulista, que terá novo capítulo durante a visita à China, ajusta-se à ofensiva militar russa no Donbass.

Analistas ingênuos imaginam que a retórica sobre o “clube da paz” reflete apenas a ambição de Lula de emergir como ator diplomático global. Subestima-se o impulso “anti-imperialista” (na verdade, antiamericano) da política externa cultivada pelo PT, bem como seu estreito alinhamento com a orientação geopolítica de Havana. As sentenças proferidas por Lula na RT não decorrem de desinformação ou da vontade de agradar ao ditador russo. São expressão precisa de uma visão de mundo.

A “solidariedade” de Bolsonaro a Putin tinha relevância mínima, devido ao autoimposto isolamento diplomático do Brasil. A “solidariedade” de Lula a Putin, pelo contrário, tem implicações significativas.

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