Artigo de Demétrio Magnoli, O Globo, 26/12/2022

 Por que Lula escolhe aliança com a direita bolsonarista?


Ninguém, exceto militantes fanáticos, tem o direito de continuar a levar a sério o rugido santo do lulismo


Gilmar Mendes, operando monocrática e politicamente, torpedeou a chantagem de Arthur Lira, retirando o Bolsa Família do teto de gastos. Lula não precisava mais do Centrão para cumprir suas promessas centrais de campanha. Mas a PEC, explicaram os próceres do PT, era “o Plano A, o B e o C”. Já não se tratava de colocar comida na mesa dos pobres. O plano obsessivo era — e é — cooptar uma ampla facção do bolsonarismo para o governo.

Foi por pouco, seis a cinco, e na última hora. A maioria do STF operou juridicamente, resistindo à tentação da politicagem, ao declarar a inconstitucionalidade do “orçamento secreto”. Os negociadores de Lula usaram a decisão para concluir o pacto de aliança com Lira, repartindo ao meio o fruto envenenado.

“Genocida!”, “pedófilo!”, “canibal!” — ninguém, exceto militantes fanáticos, tem o direito de continuar a levar a sério o rugido santo do lulismo. O agora camarada Lira funcionou como esteio indispensável de Jair Bolsonaro. As duas tábuas da aliança votadas no Congresso — a PEC da Transição e a divisão das verbas do extinto “orçamento secreto” — evidenciam que, se depender de Lula, o comandante parlamentar das forças bolsonaristas se tornará um baluarte do novo governo.

A imprensa afogou-se em eufemismos. Crédito extraordinário? Não: a PEC oferece segurança jurídica mais robusta. Pacto com o bolsonarismo? Sim: disso depende a sacrossanta “governabilidade”. Tudo que era sólido desmancha-se no ar: o escandaloso converte-se em natural, necessário, quase sábio.

Só que é mentira.

A nova Câmara, embora bastante conservadora, propicia a construção de maioria sem o bolsonarismo. Uma base constituída pelos partidos que apoiaram Lula no turno final mais MDB, PSD, PSDB e Cidadania somaria 241 deputados, contra 194 dos cinco partidos bolsonaristas (PL, PP, Republicanos, PTB e PSC). Os 16 faltantes para a maioria absoluta encontram-se em facções dos demais partidos, especialmente no União Brasil. A paisagem não é diferente no Senado. Uma base constituída em linhas similares teria 41 cadeiras, contra 24 dos partidos bolsonaristas. Faltaria, para a maioria, apenas um voto entre os 16 senadores restantes.

Lula tinha, portanto, a oportunidade de governar sem Lira e sem o bolsonarismo, aprovando leis e medidas provisórias. Só faltariam votos para passar PECs — mas, num país normal, emendas constitucionais não devem ser vistas como ferramentas de governo. Dessa constatação, nasce a indagação: por que o presidente eleito escolhe, voluntariamente, a aliança com a direita bolsonarista?

Uma pista para a resposta encontra-se na aprovação da PEC do Calote, em dezembro de 2021, que adiou o pagamento de precatórios, e da PEC Kamikaze, em julho, que inventou uma “emergência” para ampliar o valor do Auxílio Brasil. No primeiro episódio, cinco dos seis senadores petistas votaram com o bolsonarismo. No segundo, as bancadas petistas no Congresso votaram em massa com o governo.

A aliança Lula/Lira assenta-se sobre uma plataforma comum: a captura dos recursos públicos por grupos de interesse privilegiados. Lula declarou, há pouco, que “acabaram as privatizações”. De fato, porém, a privatização principal, a do Estado, continua a todo vapor.

É coisa antiga. O manejo das políticas fiscal e parafiscal e as concessões de subsídios abertos e ocultos para atender a interesses privados, assim como a proteção dos altos salários da elite do funcionalismo, inscrevem-se na tradição política brasileira. A novidade das últimas décadas é que os mecanismos de apropriação privada dos recursos públicos passaram a ser mascarados por programas de transferência de renda aos pobres.

O Estado-Financiador — eis o conceito central que configura o acordo entre Lula e Lira. Dele emana a necessidade de maiorias parlamentares excepcionais, capazes de promover frequentes mudanças constitucionais. Os arcabouços legais da responsabilidade fiscal, concebidos a partir do Plano Real, começaram a cair sob o fogo de Bolsonaro/Lira. A aliança Lula/Lira promete derrubar o pouco que resta.

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