Editorial do Estadão, 20/10/2021

 O atropelo inconstitucional de Lira


A pandemia exigiu abreviar e simplificar alguns ritos legislativos. Mas regras para tempos excepcionais não podem perder seu caráter igualmente excepcional



Notas & Informações, O Estado de S.Paulo
20 de outubro de 2021 | 03h00


Por sua natureza, a atividade legislativa requer calma e reflexão. A função do Congresso não é dar soluções imediatistas aos problemas do País. A lei deve constituir uma resposta madura, apta a permanecer no tempo – o que exige serenidade e estudo. Logicamente, isso tudo representa um sério desafio para o Legislativo, que se vê muitas vezes instado pela sociedade a apresentar medidas instantâneas.

Agora, o Congresso tem precisado enfrentar, em relação aos tempos da atividade parlamentar, um novo desafio, criado pelo próprio presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL). Não é a pressão da população que tem levado à precipitação dos trabalhos legislativos. A Presidência da Câmara, que deveria ser a primeira a preservar a atividade parlamentar, tem promovido um inconstitucional atropelo na tramitação das propostas legislativas.

Como revelou o Estado, Arthur Lira (PP-AL) não apenas tem relevado o estrito cumprimento do Regimento Interno da Câmara dos Deputados – valendo-se de brechas para impor sua pauta –, como já colocou em votação projetos cuja versão final era desconhecida pelos próprios deputados. Trata-se de ponto fundamental. Não há como votar um texto sem que os parlamentares saibam o conteúdo desse texto.

No dia 14 de outubro, por exemplo, o relatório final da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 5/21, que altera regras sobre o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), só foi divulgado após o início da sessão de votação. O projeto terminou sendo retirado da pauta, mas o intento abusivo ficou evidente.

O atropelo não tem relação em si com o conteúdo da proposta legislativa. No caso, a PEC 5/21 tem pontos muito positivos, que podem promover maior eficiência do CNMP. De toda forma, é evidente que nenhuma lei pode ser votada sem que se saiba o que está sendo votado. Ainda mais se for, como era o caso, uma Emenda Constitucional.

No fim das contas, esse modo de proceder prejudica as boas propostas, suscitando desnecessárias suspeitas sobre seu conteúdo e sua motivação. Foi o que ocorreu, por exemplo, com a tramitação da reforma da Lei de Improbidade. Era um projeto necessário, que veio estabelecer um patamar mínimo de segurança jurídica em área especialmente sensível, com implicações diretas sobre toda a administração pública e, por consequência, sobre toda a sociedade. No entanto, a tramitação na Câmara foi atabalhoada, sem votação do relatório pela comissão especial e com a decretação de um inoportuno regime de urgência.

Episódio especialmente grave foi a votação na Câmara do projeto que altera o Imposto de Renda (IR). No momento em que foi votado, o texto final da reforma do IR era desconhecido pelos parlamentares. Não havia sido divulgado. Ou seja, os parlamentares votaram um texto sem saber o que ele representava para o Estado e para os cidadãos.

A confirmar o absurdo da situação, depois da votação, foram divulgados os efeitos da proposta sobre as contas públicas. Surpresos, os deputados descobriram, então, que a reforma do IR aprovada na Câmara resultava em perda de receita de R$ 21,8 bilhões para a União e de R$ 19,3 bilhões para Estados e municípios.

Seja qual for o motivo dessa inversão – tem-se a votação e só depois o texto “aprovado” é divulgado –, ela é radicalmente inconstitucional e antidemocrática. Não há a rigor votação de uma matéria se a matéria nem sequer foi publicamente definida. É realmente estranho que, num regime democrático, seja necessário recordar esse requisito.

Além de respeitar a ordem mínima – votação depois da divulgação do texto –, é necessário restabelecer o normal funcionamento das comissões no Congresso, que têm um papel profundamente democrático. É nas comissões que os temas são debatidos, amadurecidos e questionados, sendo um importante âmbito de transparência. A pandemia exigiu abreviar e simplificar alguns ritos legislativos. Mas regras para tempos excepcionais não podem perder seu caráter igualmente excepcional. A sociedade precisa do Legislativo funcionando normalmente.

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